domingo, 17 de outubro de 2010

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Não acredite em amostra grátis — Rede Brasil Atual: "saúde
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Indústria farmacêutica ainda dita preços de remédios cujas patentes não deviam nem existir

Por: Cida de Oliveira, Rede Brasil Atual

Publicado em 14/10/2010
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Márcia recorreu ao Banco de Remédios, uma ONG de Porto Alegre, e conseguiu os caros comprimidos que precisa para tratar uma doença que ataca os rins (Foto: Rodrigo Queiroz)

Entre 2001 e 2007, um reconhecido programa brasileiro poderia ter gasto US$ 519 milhões a menos só com a compra de cinco medicamentos do coquetel de combate aos efeitos da aids e assim atender mais portadores do HIV. O prejuízo, calculado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teria sido evitado não fossem dois artigos da Lei 9.279, de 1996, conhecida como Lei Brasileira de Propriedade Industrial (LPI), elaborada e aprovada a toque de caixa no governo Fernando Henrique Cardoso. Esses artigos – 230 e 231 – instituíram as chamadas patentes pipeline, proibiram o acesso do sistema de saúde aos genéricos, então disponíveis para tratar todas as doenças, e causaram danos ainda a calcular à saúde e ao bolso do brasileiro, aos cofres públicos e à indústria farmacêutica nacional.

Os artigos permitiram a aprovação automática, sem avaliação prévia, dos pedidos ou de patenteamento feitos ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) até um ano após a entrada da lei em vigor. Bastava ao requerente comprovar o registro original de patente em outro país para obter aqui o direito de exclusividade. A corrida foi grande. Entre maio de 1996 e de 1997 foram depositados 1.182 pedidos, dos quais mais de 700 eram de fármacos.

A lista inclui itens caríssimos e essenciais no tratamento das mais variadas doenças, como o Imatinib (marca comercial Glivec), usado contra leucemia. O preço ao consumidor de uma caixa com 30 comprimidos chega a custar R$ 12 mil. Por isso, muitos deles são alvo de batalhas entre o governo, entidades que defendem o acesso aos tratamentos, fabricantes de genéricos e os detentores das patentes.

Em maio de 2007, pela primeira vez, o Brasil decretou a quebra de patente do Efavirenz, produzido pelo laboratório norte-ameri­cano Merck para terapia antiaids, declarado de interesse público. O fabricante chegou a oferecer desconto de 30% sobre o preço de US$ 1,59 por comprimido, mas o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, considerou insuficiente. Com o licenciamento, foi possível importar versões genéricas de laboratórios qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Cheque em branco assinado e entregue por FHC às indústrias, especialmente as bilionárias farmacêuticas, os dois artigos da LPI estão sendo contestados. Em novembro de 2007, a Federação Nacional de Farmacêuticos (Fenafar), em nome da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), pediu ao procurador-geral da República, Antônio Fernando Barros e Silva e Souza, a propositura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4234), protocolada quase dois anos depois no Supremo Tribunal Federal (STF).

Por que a pressa?

“Os artigos protegem invenções que, por estarem registradas em outros países antes de 1995, deixaram de ser novidade, e não atendiam mais o principal requisito de patenteabilidade”, explica a advogada Renata Reis, coordenadora do grupo de trabalho sobre propriedade intelectual da Rebrip. “Queremos que essas patentes caiam e voltem ao domínio público, que permite a fabricação de suas versões genéricas. Assim corrigiremos esse erro histórico.” Segundo a advogada, se a decisão do Supremo for favorável, é possível que se decida pela inconstitucionalidade de maneira retroativa, abrindo caminho para ações indenizatórias, ou com validade apenas após a sentença.

Renata, que integra também a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, do Rio de Janeiro, conta que a ação nasceu da constatação de que as drogas contra HIV estavam na lista do pipeline. A partir de então seu grupo começou a publicar artigos alertando para o problema, e costumeiramente criticados “por olhar muito para o passado”. Até que um evento realizado em São Paulo, em 2007, teve forte presença de representantes das farmacêuticas. “Foi um termômetro do alto interesse pelo tema”, diz. O grupo se debruçou então a escrever ADI.

Desconhecido fora dos laboratórios e das ONGs ligadas ao setor, o assunto já suscita pressões para influenciar a decisão do Supremo. Segundo o site do STF, a Anvisa, a Associação Brasileira da Indústria Química Fina, a Fundação Oswaldo Cruz e representantes da área farmacêutica e de produtores de sementes apresentaram argumentos. Por enquanto, foram acolhidos apenas o da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que reúne 28 laboratórios que abastecem 54% do mercado brasileiro. A entidade quer a improcedência da ação.

Outra aberração da lei é a pressa com que ela foi elaborada e aprovada. Em 1994, países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) assinaram o Acordo Trips, que obriga o reconhecimento, por 20 anos, de patente para todas as áreas tecnológicas. Até então, era opcional patentear algumas áreas, como o setor farmacêutico. Como as novas regras trariam mudanças, a OMC deu prazo até 2005 para os países em desenvolvimento se adequarem.

Nações pobres, como Moçambique e Bangladesh, têm até 2016. “Em vez de usar o tempo que tinha, o Brasil correu”, afirma a farmacêutica Gabriela Costa Chaves, integrante da Campanha de Acesso aos Medicamentos Essenciais da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Como ela diz, sobram desconfianças de que o governo cedeu a pressões da indústria. A Índia, por exemplo, só mudou sua legislação em 2005. “Com isso, sem desobedecer ao acordo, os indianos tiveram tempo para desenvolver versões genéricas mais baratas e se transformaram na grande farmácia genérica do mundo”, diz Gabriela.

Como antes da LPI o Brasil não reconhecia patentes de medicamentos, o Far-Manguinhos, laboratório vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, já fabricava, no começo dos anos 90, sete dos medicamentos do coquetel antiaids. A produção e a comercialização foram interrompidas com a nova lei. Começavam­ então o sucateamento do parque industrial nacional e a luta das organizações de saúde para mitigar o impacto das novas regras.

Consultora do Ministério da Saúde e ex-diretora de Far-Manguinhos, a química-farmacêutica Eloan Pinheiro avalia a concessão das patentes pipeline como a maior derrota que a saúde pública poderia ter. “As grandes farmacêuticas foram beneficiadas em detrimento da indústria nacional, que teve muitas fábricas desativadas ou vendidas. Ficamos dependentes de matéria-prima para medicamentos, tendo que importar quase tudo”, diz. “Lembro que no dia da votação da lei, vi no aeroporto um rapaz da Interfarma dizer ao telefone, em inglês, ‘conseguimos muito mais do que queríamos’”.

Eloan, na época dirigente do Sindicato dos Químicos e Engenheiros Químicos do Estado do Rio de Janeiro, conta que foram feitas várias reuniões. “Eram poucos os que compreendiam o estrago que estava para ser feito. O discurso de que caminhávamos para a modernidade era forte, embora, na verdade, estivéssemos reféns de uma política de importação, sem estímulo à indústria farmoquímica nacional.”

Célia Chaves, presidente da Fenafar, acrescenta que a LPI é consequência do projeto apresentado pelo governo Collor em abril de 1991, sob o argumento de criar um clima favorável aos investimentos externos. O projeto se arrastou na Câmara e no Senado, onde, sob pressão explícita do governo brasileiro, da embaixada dos Estados Unidos e do lobby­ da indústria, especialmente a farmacêutica americana, foi sucessivamente modificado até a sua aprovação, ainda no primeiro mandato de FHC.

A dirigente diz não ter dúvida de que a decisão do STF será pela inconstitucionalidade.
As patentes causam impacto no preço dos remédios. Dá ao detentor o direito de exclusividade de venda, ou de designar quem vai vender, por 20 anos, além de impor o preço que quiser. E não só a substância ativa é patenteada. Há patentes da substância e da manipulação que vai transformá-la em medicamento e até das combinações que poderão ser feitas no futuro. Isso gera confusão jurídica e os laboratórios aproveitam. É o caso do Seroquel, contra distúrbios como esquizofrenia. “Na lista pipeline com vigência até 2006, o fabricante Astrazeneca entrou com liminar para prolongar a vigência do direito de exclusividade”, explica Odnir Finotti, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos). Os preços variam entre R$ 40 e R$ 763, conforme a dosagem do princípio ativo e o número de comprimidos.

Há quase dois anos, a auxiliar administrativa Márcia Greff Demétrio descobriu que tem lúpus, uma doença autoimune que ataca os rins. O remédio indicado – mais eficaz e com menos efeitos colaterais – é o micofenato mofetil. O preço varia entre R$ 537 e R$ 1.972, conforme dosagem e quantidade. Sem poder pagar, Márcia recorreu ao programa de medicamentos de alto custo, do Sistema Único de Saúde (SUS), mas, por questões burocráticas, não conseguiu. Recorreu ao Banco de Remédios, uma ONG estabelecida em Porto Alegre, e conseguiu os comprimidos. “Há mais de um ano recebo os remédios e voltei a trabalhar e a viver normalmente”, diz.

A bancária Claudia Damarindo teve mais facilidade de acesso ao Reminyl (Galantamina) que sua mãe, Cecy, toma para retardar o avanço e complicações do Alzheimer.­ “Quando ela teve o diagnóstico, há cerca de dois anos, fomos orientados a procurar o serviço de distribuição gratuita”, conta Claudia. “Se não fosse isso, como faríamos? A aposentadoria dela mal dá para uma caixa do remédio”.

Perversidade

Está aí a perversidade da questão. Segundo a consultora Eloan Pinheiro, nos primeiros cinco anos de venda é possível recuperar o que foi investido no desenvolvimento. A partir de então, o que entrar é lucro. Quando a patente expira e os fabricantes de genéricos começam a produzir suas versões, a competição derruba os preços. Hoje, em muitas farmácias, é possível comprar o Viagra, cuja patente expirou recentemente, mais barato que o genérico. “Por que antes o fabricante mantinha o preço lá em cima se acabou mostrando depois que pode vender por muito menos?”, critica Eloan. Ela coloca em questão também os principais argumentos em defesa das patentes: o estímulo à inovação e a busca de novas moléculas.

O investimento em pesquisa e desenvolvimento, aliás, tem sido menor do que em marketing. Estudos mostram que em 2002, nos Estados Unidos, as companhias gastaram para “estreitar o relacionamento com os médicos” o dobro do que investiram em busca de novas formulações.

Nos últimos 30 anos, as estratégias comerciais ficaram mais intensas e agressivas, com o patrocínio de congressos médicos e shows de artistas famosos para o lançamento de medicamentos que nem sempre são inovadores. Sem contar as viagens nacionais e internacionais, os presentes e brindes a médicos. “Embora os grandes laboratórios neguem, é claro que todo esse gasto está embutido no preço”, diz o médico intensivista Guilherme Barcellos, diretor do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. Recentemente, a entidade lançou a campanha “Alerta – Amostra nunca é grátis”, que por meio de atividades, aulas e palestras voltadas principalmente aos médicos residentes pretende reduzir a influência das indústrias sobre a escolha do medicamento a ser receitado.

Pressionado pela crescente demanda por medicamentos para pacientes infectados pelo HIV – os gastos com aquisição saltaram de US$ 35 milhões em 1996 para US$ 305 milhões em 1998 – o governo que concedeu as patentes pipeline não viu outro jeito senão criar, três anos depois, o programa de medicamentos genéricos. Segundo a Pró Genéricos, em dez anos foram investidos mais de US$ 170 milhões na construção e modernização de plantas industriais. Pela lei, os genéricos são, no mínimo, 35% mais baratos que os de referência.­

Esses medicamentos podem ser ainda mais em conta por meio de programas como a Farmácia Popular do Brasil, do Ministério da Saúde, com unidades espalhadas em várias cidades. O artista plástico Luiz Lombardi, 59 anos, da capital paulista, recorre a esses endereços sempre que precisa.

Com um problema dermatológico, Luiz deve tomar uma cápsula de Fluconazol a cada sete dias, durante 20 semanas. Nas farmácias, cada uma custa entre R$ 8 e R$ 45. “Aqui pago R$ 0,95”, diz.
A cada 100 remédios vendidos, 20 são genéricos. Há estimativas de crescimento com a entrada no mercado das versões do Viagra e do Lipitor (atorvastatina), que por muitos anos foram beneficiados pelas pipelines. Em setembro, a Anvisa aprovou o genérico da atorvastatina – fármaco da Pfizer para baixar o colesterol que custa entre R$ 44 e R$ 656.

Os genéricos também são bom negócio. A Medley, grande empresa nacional do setor, foi comprada no ano passado pela Sanofi, uma das maiores do mundo. Essa concorrência é bem-vinda porque derruba os preços. Gabriela Chaves, do Médicos Sem Fronteiras, lembra que a terapia antirretroviral de primeira linha – usada no começo do tratamento para pacientes com resistência ao coquetel anti-HIV – custava, nos anos 1990, US$ 10 mil/paciente/ano. Hoje está por volta de US$ 87.

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