terça-feira, 16 de janeiro de 2018

De sola no assédio


De sola no assédio

Francisco Bosco, filósofo, poeta e compositor, entrou de sola na discussão sobre assédio sexual. Autor do livro “A vítima tem sempre razão”, em entrevista a Marcos Augusto Gonçalves, em blog da Folha de S.Paulo, o resumo do que ele falou está no título forte: “Feminismo dominante desqualifica divergência e vê sexo hetero como trauma”. 
Para quem tiver interesse, segue a íntegra da entrevista:
Blog – O protesto do Globo de Ouro e a carta de Catherine Deneuve e suas colegas francesas reiteram que o processo de combate ao assédio e à supremacia masculina por parte dos movimentos feministas não é monolítico, encerrando visões distintas sobre a sexualidade, a real autonomia das mulheres e o papel dos homens. Mesmo considerando que as duas manifestações midiáticas acumulam camadas de marketing, de estrelismo e algum oportunismo, elas poderiam servir de ponto de partida para um mapeamento  das perspectivas em cena? O que cada uma dessas manifestações nos diz?
Francisco Bosco – Sim, há duas perspectivas feministas diferentes em jogo. Antes de apresentá-las, permita-me entretanto questionar o termo que você usou: “reiteram”. Infelizmente, houve algo de raro no manifesto das 100 francesas, que foi o fato de um contradiscurso feminista ter sido capaz de fissurar o discurso dominante.
Esse feminismo dominante tem feito de tudo para desqualificar qualquer tipo de dissenso. E, na verdade, continuou fazendo diante do manifesto. Ele logo o reduziu à sua dimensão infeliz, aquela parte que trata da “liberdade de importunar”, que realmente mais confunde do que esclarece a zona cinzenta entre assédio e interações heterossexuais aceitáveis, e que é tão importante tentar iluminar.
Mas não; o manifesto não é apenas sobre isso, e nem principalmente sobre isso. Ele é antes de tudo uma defesa de alguns direitos fundamentais de qualquer indivíduo. Antes de tudo, o direito das mulheres de não serem estupradas, coagidas ou assediadas sexualmente (assédio aqui considerado como pressão sexual em ambientes de hierarquia profissional). Mas o sentido principal da carta me parece ser repudiar que, em nome disso, se estabeleçam métodos injustos e premissas para lá de problemáticas.
É verdadeira a crítica das francesas ao autoritarismo do movimento feminista dominante (o que esperar de uma organização chamada “Balance ton PORC”?). É verdadeira a identificação de uma dimensão de puritanismo (para as “radfems”, as feministas radicais, relações heterossexuais são constitutivamente violentas). É verdadeira a crítica ao desinteresse em separar casos evidentes de assédio sexual e acusações baseadas em premissas discutíveis (isso é o que Elizabeth Badinter, num livro de 15 anos atrás, chamava de “lógica do amálgama”). É verdadeira a crítica à justiça expeditiva, por sua vez baseada no que chamo de “sinédoque moral”, que consiste em reduzir todo um indivíduo a um traço, falta ou até a uma suspeita (o que não vai sem uma boa dose de hipocrisia, pois os julgadores sabem que não passariam pelo crivo do mesmo teste moral).
Portanto, há sim duas perspectivas feministas em jogo, e eu diria que a maior diferença entre elas é que a dominante (essa do #MeToo e seus congêneres) considera legítimo que se cometam violações a direitos fundamentais, em nome da correção de injustiças históricas contra as mulheres –e a outra perspectiva não o admite. Não é difícil compreender como se chegou a isso.
De fato, como se não bastassem todas as violências cometidas contra elas, a palavra das mulheres tem sido desqualificada, deslegitimada, fazendo-as sofrer uma segunda violência quando não podem denunciar os crimes que sofrem, ou sendo desclassificadas quando os denunciam.
A vítima nunca teve razão. E por isso o feminismo dominante resolveu inverter o jogo de poder: agora a vítima tem sempre razão. Inverteu-se a injustiça, voltando-a agora contra os homens. Não se faz justiça sem tensionar o universal e o particular, isto é, sem examinar os casos concretos, sob os princípios elementares do devido processo legal. É isso o que Margaret Atwood –considerada uma “bad feminist” pelo feminismo dominante– acaba de lembrar, em um artigo magnífico (“Am I a bad Feminist?”).
A outra questão fundamental que separa os dois feminismos tem a ver com a autoimagem da mulher. Para o feminismo de Atwood, Deneuve, Kipnis, Badinter, Maria Rita Kehl etc., a mulher é sempre agente, ativa, responsável pelo seu desejo. Para o feminismo dominante, existe uma ambiguidade entre essa imagem e aquela de uma mulher frágil, vítima incondicional do patriarcado, que é a autoimagem das “radfems” americanas dos anos 1980, cujas ideias têm se difundido de forma impressionante.
Para Dworkin, MacKinnon e companhia, o patriarcado é um sistema tão opressor que, nele, a mulher não tem condições legítimas de autonomia para manifestar seu consentimento ou repúdio em interações heterossexuais. É sob essa perspectiva que uma série de denúncias para lá de problemáticas têm sido feitas. Denúncias contra homens que transaram consentidamente com mulheres, mas as mulheres “no fundo” não o desejavam, e entretanto não puderam dizê-lo com todas as letras, “porque o patriarcado…”, “porque faz parte da construção de gênero feminino a submissão da mulher ao desejo masculino” etc.
 As denúncias por “relacionamento abusivo” (que pressupõem uma mulher frágil o suficiente para ser manipulada psicologicamente, já que isso não envolve violência ou diferença hierárquica) têm nesse ideário sua origem. Assim como as denúncias contra homens “poderosos” que usam seu prestígio social para seduzir mulheres, fora de ambientes profissionais, e por livre e “espontânea”  vontade das mulheres  (para as “radfems”, na realidade, o desejo da mulher está sempre coagido pela estrutura patriarcal, por isso nunca pode ser espontâneo; a relação heterossexual adquire assim uma dimensão constitutivamente violenta; o sexo é traumático)
 Há inúmeros casos como esses, no Brasil e nos EUA. O que eles têm em comum é que a denúncia é imediatamente acatada (“a vítima tem sempre razão”) e os homens são imediatamente punidos, de alguma forma. Vejam, a propósito, a denúncia que acaba de sofrer o comediante Aziz Ansari. Ou o magnífico conto “Cat Person” (cuja autora, entretanto, abraça a perspectiva “radfem” que ora apresento) 
Blog – Essa perspectiva das feministas radicais não vai contra as próprias conquistas femininas no campo dos direitos, da moral e do comportamento?
Bosco – Sem dúvida há uma tensão entre essa formulação e as conquistas que você aponta. O melhor livro que conheço a respeito é o da filósofa francesa Elizabeth Badinter, “Fausse Route”, que recomendo enfaticamente
Blog – Embora em algumas áreas da sociedade mulheres exerçam direitos e tenham atingido um grau já considerável de afirmação e autonomia, há o argumento de que essa situação é para elites, já que no campo do que a esquerda chama de classes dominadas, o quadro é brutal. Isso por si deslegitimaria a atitude “uma cantada não dói” de mulheres de classe média ou não, que lidam de maneira mais fluente com essas situações?  
Bosco – A meu ver essa questão tem ao menos duas abordagens.
Em primeiro lugar, me parece forçado querer reduzir as diferenças entre os discursos feministas a uma questão de classe social. Oprah Winfrey, que acabou virando a musa do #MeToo, é uma liberal que foi a favor do bombardeio americano ao Iraque, num primeiro momento.
 Ser a favor da justiça expeditiva contra homens é então um traço de defesa dos setores desfavorecidos mais importante que o apoio ao massacre de um país pobre, que incluiu assassinatos de milhares de civis? Nesse aspecto da questão, as coisas não me parecem tão simples. E é um aspecto importante, porque está associado à lógica que chamo de “sinédoque moral”, e que consiste em tomar todo um indivíduo por apenas um traço, uma falta ou até mesmo uma suspeita, e condená-lo de forma sumária (não apenas socialmente, mas às vezes profissionalmente também) por isso.
Ora, essa lógica, como já disse, não vai sem uma boa dose de hipocrisia, porque as pessoas que se engajam nela sabem perfeitamente que não resistiriam ao mesmo teste.
Repito a pergunta: qual a falta mais grave, alisar as costas de uma mulher de modo oportunista enquanto a consola (comportamento sem dúvida inadequado, mas que valeu a Garrison Keillor uma demissão sumária da rádio onde ele trabalhava há 50 anos), ou ser uma liderança civil, como Oprah, e legitimar o bombardeio ao Iraque (ainda que mais tarde tenha mudado de posição)?
Além disso, acho que há nisso tudo uma dimensão categórica, universal. Estupro é estupro, assédio sexual é assédio sexual, independentemente de perspectiva de classe. E mesmo em relação à zona cinzenta entre violências evidentes e as abordagens aceitáveis, me parece que dá pra pensar também de forma categórica.
Basicamente, penso que o consentimento deve ser a linha demarcatória fundamental entre o aceitável e o inaceitável. Consentimento, entretanto, só é moralmente legítimo se houver autonomia de ambas as partes envolvidas. Por isso assédio sexual –tal como tipificado na legislação brasileira: pressão sexual em ambientes profissionais hierarquizados– é crime: porque uma das partes não está dotada de autonomia.
Mas aqui retorna o problema de que já tratamos, sobre a perspectiva das “radfems”. Minha posição pessoal é de que as mulheres devem sempre ser responsáveis por seu consentimento. “No means no” (não significa não), e cabe ao homem acatar (qualquer insistência do homem, após ter sido desautorizado por um não, é uma forma de assédio). Mas a ausência de um não manifesto nunca poderá ser tomada como motivo para denúncias de assédio.
Isto posto, tendo a ver com olhos pouco preconceituosos as propostas de exigência de consentimento explícito, como já existem nos EUA e na Suécia. Elas soam esdrúxulas, mas são as únicas capazes de resolver o problema, de outro modo insolúvel, das acusações de estupro e violência que não se pode comprovar (por danos físicos ou testemunhas).
Nesses casos, que são a maioria, uma das partes tende a ser prejudicada (historicamente foi a mulher; agora é o homem). O que não é aceitável é esse limbo em que estamos, onde o consentimento explícito ainda não foi socialmente pactuado, mas algumas mulheres o exigem dos homens.
Blog – É sempre difícil e vista como problemática a opinião de homens no debate feminista, assim como a de brancos no debate sobre discriminação racial. Não faz muito, Dana Schutz, uma artista branca que retratou o assassinato de Emmett Till numa pintura, teve seu quadro retirado da Bienal do Museu Whitney de Nova York (sob a “justificativa” de que surgira um vazamento de água na parede) após protestos de ativistas negros. Tratou-se, afinal, de uma censura. Há uma tentativa de interdição de vozes e de estabelecer uma espécie de monopólio do debate identitário? 
Bosco – Veja, em primeiro lugar, penso a partir da perspectiva kantiana, para a qual todo sujeito está submetido à tensão entre a defesa do interesse próprio e a obediência aos imperativos morais, que por definição são os que trazem em si o interesse do outro. Assim, reduzir a intervenção pública de um sujeito à sua posição social –como se aquela necessariamente devesse espelhar essa– fere a própria dimensão moral da vida de cada um. Isso simplesmente não é verdade.
Além disso, trata-se de um debate relacional, que envolve interesses das categorias envolvidas. De novo, não acredito que se possa reduzir tudo a essas categorias (mulheres contra homens, brancos contra negros etc.). Mas, se se quiser utilizá-las, é preciso observar que, então, as mulheres também têm uma perspectiva parcial, não neutra.
Sobre a sua questão, propriamente, permita-me uma última resposta mais longa. As estratégias de interdição dos discursos de ódio, chamadas de “no platform”, surgiram na esquerda identitária anglo-saxã com uma razão justa: impedir a difusão de ideias que pretendem revogar o encaminhamento moderno das sociedades.
Por moderno designo o indeterminado, o não tradicional, a ausência de fundamento positivo do mundo. Moderno é o mundo que aceita todas as formas de vida, pois não crê em um fundamento metafísico (os monoteísmos, por excelência) a determinar a origem transcendental de um conjunto de normatividades (a heterossexualidade, a cisgeneridade, o que for).
 Os chamados discursos de ódio (“hate speechs”) são discursos antimodernos, reacionários, restauradores da tradição. Impedir que isso aconteça tem, paradoxalmente, um sentido libertário: garantir que qualquer possibilidade seja igualmente aceita.
Um primeiro problema é que a direita se apropriou dessas práticas. O caso da passagem de Judith Butler pelo Brasil foi exemplar disso. É óbvio que a equivalência é apenas formal. O sentido é inverso: a direita pretende proibir a liberdade. Não há paradoxo, não há legitimidade, é puro arbítrio dogmático. E, entretanto, isso causa um problema estratégico, pois a direita pode defender a legitimidade de suas práticas como sendo práticas também da esquerda.
Mas há um outro nível ainda mais problemático. Não é assim tão óbvio determinar o que são discursos de ódio, quais são os discursos que devem ser evitados. Temos visto a esquerda tentar interditar discursos da própria esquerda, quando esses últimos não estão alinhados às diretrizes dos que, então, tentam proibi-lo.
Além do caso que você menciona, aqui no Brasil já vimos episódios como o do humorista Rafucko, que sofreu um protesto de ativistas do movimento negro por conta de obras artísticas suas tematizarem questões raciais. Nos EUA, feministas da universidade de Northwestern tentaram impedir a circulação de um artigo da também feminista Laura Kipnis, porque ela contestava as práticas feministas no seu campus.
Tudo isso traz à tona uma vexata quaestio: quem pode determinar que discursos devem ser interditados?
Tudo somado, minha opinião é de que a esquerda deveria defender categoricamente a liberdade de expressão neste momento. É melhor apostar no esclarecimento do que duplicar os mecanismos obscurantistas que estão tentando se apoderar da sociedade brasileira.

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