segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A Justiça Trabalhista dos Boers

 A Justiça Trabalhista dos Boers - Altamiro Borges:



A Justiça Trabalhista dos Boers


Por Hamilton Pereira/Pedro Tierra, no site da Fundação Perseu Abramo:

Devemos
todos render homenagens ao jurista Ives Gandra Martins Filho,
presidente do Tribunal Superior do Trabalho, pela limpidez com que
defendeu a Reforma Trabalhista que entra em vigor nesses primeiros dias
de novembro, em entrevista a um diário paulista. Respondeu às questões
levantadas com clareza de fazer inveja a seus pares que, ao longo de
século 20, defenderam o regime do Apartheid, na África do Sul.

Como
a elite conservadora brasileira que ele representa com rigor e
convicção é mais generosa que os Boers sul-africanos – lá eles apartavam
os negros – aqui a elite segrega os negros e os pobres. Há mais de
quinhentos anos. No meio do pesadelo de múltiplas faces que colheu a
sociedade brasileira, essa Reforma Trabalhista talvez seja a mais
emblemática e reveladora dimensão do conteúdo de classe do golpe de
2016.

Ives Gandra Filho oferece um inestimável serviço de
esclarecimento à sociedade – em particular aos trabalhadores – sobre os
objetivos do golpe. Expõe honestamente o conteúdo das reformas que deram
fundamento ao atropelo da soberania popular e da Constituição de 1988,
que as elites conservadoras se empenham em esconder sob a máscara do
discurso da flexibilização e modernização das relações de trabalho.

Contribui, assim, para polir o círculo de ferro da exploração dos
assalariados e perpetuar o ranço escravocrata que modela nossa matriz de
desenvolvimento e as relações entre empregados e empregadores desde a
colônia, reciclando-as e conferindo a elas um verniz para que se tornem
aceitáveis aos olhos do mundo contemporâneo.

O eminente jurista
começa com um sofisma: “A espinha dorsal da reforma foi o prestígio da
negociação coletiva”. Primeiro, a reforma despe o trabalhador da
precária proteção que o direito anterior lhe garantia. Passo seguinte,
lança-o na arena de negociação, para se entender com os leões...

Se
considerarmos, como afirma o entrevistador, que a grande alteração do
texto da reforma na Câmara é apontada como uma demanda do lado das
empresas, e com o repórter perguntarmos: o Sr. Concorda? A resposta vem
de pronto: “Por um lado, foi a demanda das empresas, insatisfeitas com a
ampliação de direitos. Por outro, muitos direitos foram criados pela
reforma.” Quais? “Tinha uma súmula do TST que disciplinava a
terceirização. Agora, há uma lei. A reforma, para os terceirizados, não
precarizou condições.” Um trabalhador terceirizado responderá também
prontamente ao jurista: “Nem precisava...”

Quando indagado sobre
se com a reforma “fica pior ser empregado”? Rebate: “Não. Fica mais
fácil. Por exemplo, a regulamentação do trabalho intermitente. A pessoa
não teria emprego se fosse com jornada semanal”. Os senhores de escravos
não encontraram, durante quatro séculos, fórmula tão perfeita de
exploração: utilizar o trabalho escravo sem assumir nenhuma
responsabilidade sobre o corpo da peça, como se denominavam os cativos.
Não têm a obrigação de alimentá-lo, vesti-lo e oferecer-lhe moradia – a
senzala – para assegurar sua presença no eito na madrugada do dia
seguinte.

Ao tratar do dilema entre pleno emprego e garantia de
direitos, o caminho defendido não poderia ser mais explícito: suprimir
direitos para garantir acesso ao mercado de trabalho. Desculpem,
flexibilizar direitos. Para defender os interesses de classe dos
empregadores, o jurista Ives Gandra Filho se esquece que o país viveu
nos governos Lula e Dilma um período de pleno emprego poucas vezes
registrado na história da economia brasileira sem agredir, ou como
prefere o Presidente do TST, flexibilizar os direitos dos trabalhadores
garantidos pela Constituição de 1988.

Nesse 11 de novembro, as
elites reacionárias refundem as extremidades e soldam mais uma vez o
anel de ferro que cinge a história da exploração dos assalariados. O
país que mais tardiamente aboliu a escravidão, dá uma volta sobre si
mesmo e revoga a Lei Áurea. Os escravocratas do século 21 comemoram. A
massa trabalhadora sofrerá por um tempo as consequências até modelar
novamente os instrumentos aptos a produzir a ruptura necessária.

Os
Boers e seus descendentes imaginavam que o regime do Apartheid duraria
para sempre. No cálculo frio dos exploradores ou dos escravocratas não
se incluem personagens como Nelson Mandela. Lá eles o mantiveram preso
por quase três décadas. E ele saiu de Robben Island para assumir o
governo do país, contra a discriminação e o ódio de raça. Em nome da
liberdade e da generosidade. Reconhecido pelo mundo civilizado.

Aqui,
há 40 anos, os escravocratas e seus descendentes combatem um homem que
encarna o avesso de sua lógica. Um homem e os instrumentos que modelou
na luta contra o preconceito e o ódio de classe. Em nome da liberdade e
da generosidade. Reconhecido pelo mundo civilizado.

Luiz Inácio
mergulha, nesses dias, no mar humano que habita o Brasil profundo, em
caravanas para beber a força que renova suas energias. Quem sabe, por
onde passar, ele possa deixar o estímulo necessário para que em cada
comunidade se constituam Comitês de Defesa da Democracia, única forma de
convivência social capaz de permitir ao Brasil escapar do pesadelo.
Desse anel de ferro com que os escravocratas e seus descendentes
aprisionam nossa história e nosso destino.

* Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário