domingo, 1 de outubro de 2017

O golpe e os golpeados

O golpe e os golpeados

A barbárie de um país em que as palavras já não dizem








Sheila Cristina Nogueira da Silva chora a morte do filho Carlos Eduardo, 20 anos, com seu sangue no rosto, no dia 10 de junho, no Rio de Janeiro.




Sheila
Cristina Nogueira da Silva chora a morte do filho Carlos Eduardo, 20
anos, com seu sangue no rosto, no dia 10 de junho, no Rio de Janeiro.


Sheila da Silva desceu o morro do Querosene para comprar três
batatas, uma cenoura e pão. Ouviu tiros. Não parou. Apenas seguiu,
porque tiros não lhe são estranhos. Sheila da Silva começava a escalar o
morro quando os vizinhos a avisaram que uma bala perdida tinha
encontrado a cabeça do seu filho e, assim, se tornado uma bala achada.
Ela subiu a escadaria correndo, o peito arfando, o ar em falta. Na porta
da casa, o corpo do filho coberto por um lençol. Ela ergueu o lençol.
Viu o sangue. A mãe mergulhou os dedos e pintou o rosto com o sangue do
filho.


A cena ocorreu em 10 de junho, no Rio de Janeiro.
Com ela , a pietà negra do Brasil atravessou o esvaziamento das
palavras. O rosto onde se misturam lágrimas e sangue, documentado pelo
fotógrafo Pablo Jacob, da Agência O Globo, foi estampado nos
jornais. Por um efêmero instante, que já começa a passar, a morte de um
jovem negro e pobre em uma favela carioca virou notícia. Sua mãe fez
dela um ato. Não fosse vida, seria arte.




A pietà pinta o rosto com o sangue do filho para se fazer humana

Sheila ouviu os tiros e seguiu adiante. Ela tinha que seguir adiante
torcendo para que as balas fossem para outros filhos, outras mães. E
voltou com sua sacola com batata, cenoura e pão. Ela ainda não sabia que
a bala desta vez era para ela. Ainda nem havia sangue, mas a imagem já
era terrível, porque cotidiana, invisível. A mulher que segue apesar dos
tiros e volta com batata, cenoura e pão, furiosamente humana, buscando
um espaço de rotina, um fragmento de normalidade, em meio a uma guerra
que ela nunca pôde ganhar. E guerras que não se pode ganhar não são
guerras, mas massacres. E então ela corre, esbaforida. E desta vez a
batata, a cenoura, o pão já não podem lhe salvar.


A pietà pinta o rosto com o sangue do filho para se fazer humana no
horror. E então nos alcança. Mas é uma guerreira desde sempre derrotada,
porque nos alcança apenas por um instante, e logo será esquecida. E
depois do seu, outros filhos já foram perfurados à bala. E seu sangue
correu por becos, vielas e escadarias, misturando-se ao esgoto dos rios e
riachos contaminados que serpenteiam pelas periferias.


A pietà da favela não ampara o corpo morto do filho como na imagem
renascentista. Ela ultrapassa o gesto, porque aqui não há renascenças.
Faz do sangue do filho a sua pele, converte o sangue dele no seu,
carrega-o em si. Ritualiza. Neste gesto, ela denuncia duas tragédias: o
genocídio da juventude negra que, desta vez, alcançou seu filho e o fato
de que “genocídio” é uma palavra que, no Brasil, já não diz. Se para a
dor da mãe que perde um filho não há nome, não existe palavra que dê
conta, há um outro horror, e este aponta para o Brasil. A tragédia
brasileira é que as palavras existem, mas já não dizem.




As palavras tornaram-se cartas extraviadas, perdidas, que jamais chegam ao seu destino

Porque, se não há escuta, não há dizer. As palavras tornam-se cartas
enviadas que jamais chegam ao seu destino. Cartas extraviadas, perdidas.
Se o outro é um endereço sempre errado, uma casa já desabitada, não há
ouvidos, não há resposta. Num país em que as palavras deixam de dizer,
resta o sangue. As palavras que as mães poderiam dizer, as palavras que
de fato dizem, não perfuram nenhum tímpano, não ferem nenhum coração,
não movem consciência alguma. Diante do corpo morto do filho, a pietà
negra precisa vestir o sangue, encarnar, porque as palavras
desencarnaram. No Brasil, as palavras são fantasmas.


Quatro dias depois de Sheila da Silva ter pintado o rosto com o
sangue do filho, em 14 de junho, no município de Caarapó, em Mato Grosso
do Sul, cerca de 70 fazendeiros montaram em suas caminhonetes
e invadiram a área onde um grupo de indígenas Guarani Kaiowá havia
retomado Toro Paso, a sua terra ancestral. Assassinaram o indígena
Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza Guarani Kaiowá, 26 anos, agente de
saúde, e feriram à bala outros cinco indígenas, entre eles um menino de
12 anos, que levou um tiro na barriga. Não foi um “confronto”, como
parte da imprensa insiste em dizer. Foi um massacre.


Cerca de 70 pessoas saíram de suas casas com uma ideia: vou expulsar
esses índios mesmo que tenha que matá-los. E mataram. Pelo menos desde a
véspera já se sabia na região que o ataque estava planejado, mas as
autoridades não tomaram nenhuma providência para impedi-lo. Mais um
episódio de outro genocídio, o dos indígenas. Mais de 500 anos depois da
invasão europeia, na qual milhões começaram a ser exterminados, ele
segue em curso. Mas a palavra já nada diz. E o sangue manchou Toro Paso,
mais uma vez.


Os Guarani Kaiowá sabem que a palavra dos não índios, no Brasil, nada
diz. Desde 1980 é denunciado que os jovens indígenas se enforcam em pés
de árvores porque as palavras dos brancos nada dizem. Sem poder viver,
se matam. Isso chamou alguma atenção, no início do “fenômeno”, depois
entrou na rotina, já não era notícia. Os altos índices de desnutrição,
que já levou crianças à morte, também são bem conhecidos. Nem a
consciência de que os indígenas passam fome acelerou o processo de
demarcação de suas terras.




Os Guarani Kaiowá sabem que a palavra dos brancos não age

Em 2012, um grupo de 170 homens, mulheres e crianças Guarani Kaiowá escreveu uma carta.
Eles seriam mais uma vez arrancados do seu lugar por uma decisão da
(in)justiça. Escreveram, na língua dos brancos, que resistiriam em sua
terra ancestral, dela não sairiam nem mortos: “Pedimos ao Governo e à
Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas
decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma
vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de
enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar
nossos corpos”.


A carta os arrancou do silêncio mortífero
ao qual haviam sido condenados. Afinal, a interpretação do que os
indígenas diziam era clara: assumam o genocídio e decretem nossa
extinção. Nos sepultem todos de uma vez e plantem soja, cana e boi sobre
a terra roubada e adubada com nossos corpos. Tenham a coragem de
assumir o extermínio em vez de usarem suas leis para nos matar aos
poucos. Pronunciem o nome do que de fato são: assassinos. Era isso e,
dito na língua dos brancos por aqueles que a outra língua pertencem,
causou um choque. Mas o choque passou. E os Guarani Kaiowá continuaram a
ser exterminados. Também à bala.




Para os Guarani, é a palavra-alma que humaniza; sem ela a pessoa se torna um não ser

A palavra, para os Guarani, tem um sentido profundo. Ñeé é palavra e é alma, é palavra-alma. Vale a pena lembrar um trecho do belo texto da antropóloga Graciela Chamorro:


“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida
para os povos chamados Guarani e como eles imaginam o transcendente. As
experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O
nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si
um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano.
Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na
cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com
isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises
da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um
afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os
rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a
sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a
palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um
devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu
podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo
significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...)
Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em
palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida
como um todo”.


Como explicou o antropólogo Spensy Pimentel quando a carta foi
divulgada, “a palavra é o cerne da existência, tem uma ação no mundo,
faz as coisas acontecerem, faz o futuro”. Para os Guarani Kaiowá,
palavra é “palavra que age”. Os indígenas ainda não tinham compreendido a
profundidade da corrosão do que se chama de Brasil, essa terra erguida
sobre seus cadáveres por colonizadores que já foram colonizados,
expropriados que se tornaram expropriadores, refugiados que expulsam.
Essa terra em permanente ruína porque construída sobre ossos, vísceras e
sangue, unhas e dentes, ruínas humanas. Ao invocar a palavra dos não
índios, os Guarani Kaiowá não tinham compreendido ainda que o Brasil
apodrece porque a palavra dos brancos já não age.




A palavra dos brancos perdeu a alma

O genocídio dos Guarani Kaiowá, assim como o de outros povos
indígenas, ao ser pronunciado, até gritado, não produz ação, não produz
movimento. Que se enforquem, que verguem de fome, que sejam perfurados à
bala, nada disso move. As palavras se tornaram tão silenciosas quanto
os corpos mortos. As palavras, como os corpos, não têm mais vida. E,
assim, não podem dizer. Não são nem fantasmas, porque para ser fantasma é
preciso uma alma, ainda que penada. A palavra-alma dos Guarani ilumina,
pelo avesso, que a palavra de seus assassinos já não está. Nem é.




O golpe fundador do Brasil se repete, e a carne golpeada é negra, é indígena

Se há um genocídio negro, se há um genocídio indígena, e conhecemos
as palavras, e as pronunciamos, e nada acontece, criou-se algo novo no
Brasil atual. Algo que não é censura, porque está além da censura. Não é
que não se pode dizer as palavras, como no tempo da ditadura, é que as
palavras que se diz já não dizem. O silenciamento de hoje, cheio de som e
de fúria nas ruas de asfalto e também nas ruas de bytes, é abarrotado
de palavras que nada dizem. Este é o golpe. E a carne golpeada é negra, é
indígena. Este é o golpe fundador do Brasil que se repete. E se repete.
E se repete. Mas sempre com um pouco mais de horror, porque o mundo
muda, o pensamento avança, mas o golpe segue se repetindo. A ponto de
hoje calar mesmo as palavras pronunciadas.


No filme Trago Comigo,
de Tata Amaral, que acabou de estrear nos cinemas do Brasil, o mais
potente são as tarjas pretas. A obra entremeia uma narrativa de ficção
com depoimentos de pessoas reais. Um diretor de teatro, vivido por
Carlos Alberto Riccelli, é um guerrilheiro da ditadura preso, torturado e
exilado, que esqueceu de um capítulo vital da sua história. Para a
reinauguração de um teatro que fora abandonado, um teatro cheio de pó,
teias de aranha e silêncios, como esse canto da sua memória, ele encena
uma peça que é sua própria história, o capítulo apagado de sua história.
Para lembrar de si, encena a realidade como ficção. Mas, para que
lembremos nós, os que assistem, de que é de realidade que se trata,
torturados pelo regime civil-militar contam sua estadia nos porões da
repressão.


Quando pronunciam os nomes dos torturadores, porém, a voz é emudecida
e uma tarja preta tapa a boca daquele que fala. Os nomes não poderiam
ser pronunciados ainda hoje, quando se vive formalmente numa democracia,
porque torturadores e assassinos do regime não foram julgados nem
condenados. Ao escolher a tarja, a diretora protege a si mesma de
eventuais processos judiciais. Mas também denuncia o golpe que continuou
– e continua – a ser perpetrado.




Em Trago Comigo, a tarja que tapa a boca das vítimas aponta o obsceno: os torturadores seguirão impunes

A tarja aponta o que é obsceno – ou pornográfico: que os torturadores
e assassinos não podem ser nomeados porque não serão julgados. E,
assim, não responderão pelos seus crimes. Sem poder nomear aqueles que
os violentaram, os que sobreviveram continuam a ser violentados. E os
mortos, os que foram assassinados, sem o nome do assassino seguirão
insepultos. Sem fazer o acerto de contas com a história, um país condena
o presente, porque o passado segue se repetindo no presente. E nada
pior do que um passado que não passa.


A questão é que, fora do cinema, os nomes dos 377 agentes do Estado
que atuaram direta ou indiretamente no sequestro, tortura, assassinato e
ocultação de cadáveres durante o regime de exceção (1964-1985) foram
pronunciados. Estão documentados e acessíveis ao público no relatório da Comissão Nacional da Verdade,
que apurou os crimes da ditadura. Mas nem por isso foram julgados. O
único torturador reconhecido pela Justiça foi o coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra (1932-2015). Em abril de 2015, porém, uma das ações contra ele foi suspensa por liminar
da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), com base no
perdão promovido pela Lei da Anistia. O coronel morreu em outubro sem
ter sido punido. Há um grande clamor para que a Lei da Anistia seja
revista, mas em 2010 o Supremo decidiu não revê-la. A Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) entrou com recursos, que anos depois ainda não
foram analisados.




É mais complicado do que censura, porque hoje as palavras são ditas, mas não produzem transformação

Assim, é ainda mais complicado do que censura, é ainda mais
complicado do que não poder dizer. Porque, de novo, as palavras existem.
As palavras são ditas. Mas nada dizem, porque não produzem movimento
suficiente para transformar a realidade. Neste caso, movimento
suficiente para promover justiça, para que as palavras possam dizer que
este país não tolera – nem tolerará – torturadores e assassinos, que
este país não tolera – nem tolerará – ditadores e ditaduras.


Só num país onde as palavras faliram que a escolha de colocar uma
tarja sobre as palavras ditas é uma denúncia mais potente do que
dizê-las – ou destapá-las. A tarja aponta menos o que não se pode dizer,
mais o que de nada adianta dizer. A censura é a repressão aplicada às
palavras que agem e, por agir, desestabilizam a opressão, tornam-se
perigosas para os opressores. Aqui, não agem mais, o que faz o país que
retornou à democracia mergulhar num terror de outra ordem.


Na votação da Câmara dos Deputados que decidiu pela abertura do
processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff (PT), em 17 de
abril, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) mostrou o que acontece
num país em que as palavras perderam a alma. Ao votar pelo impeachment,
ele homenageou um dos maiores torturadores da ditadura civil-militar:
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de
Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo
Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim".


Sob o comando de Ustra, pelo menos 50 pessoas foram assassinadas e outras centenas foram torturadas.
Uma delas foi Amélia Teles, mais conhecida como Amelinha. Depois de ser
barbaramente torturada, ela foi sentada na “cadeira do dragão”,
instrumento em que a vítima é amarrada com cintas de couro e fios
elétricos são colocados em várias partes do corpo, entre elas os
genitais. Amelinha estava nua, urinada e vomitada. Ustra mandou chamar seus dois filhos,
de 4 e 5 anos, para testemunharem a situação da mãe. A menina
perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Amelinha estava azul por
causa dos choques. As crianças foram levadas, e a mãe seguiu sendo
torturada.


Este era o homem que Bolsonaro homenageou, e este é apenas um caso
entre centenas. Jair Bolsonaro foi aclamado por muitos por homenagear um
assassino em série, sem contar a perversão explícita do aposto: “o
pavor de Dilma Rousseff”. Como se sabe, a presidente, hoje afastada, é
uma das torturadas pela ditadura.





O cuspe de Jean Wyllys não acertou apenas Jair Bolsonaro, acertou muito mais

Quando o deputado Jean Wyllys (PSOL) votou contra o impeachment,
Bolsonaro o insultou, chamando-o de “veado”, “queima-rosca” e “boiola”, e
agarrou-o pelo braço. Jean Wyllys cuspiu em Bolsonaro. O cuspe virou
polêmica. Para parte da sociedade brasileira, cuspir se tornou um ato
mais grave do que homenagear um torturador e assassino que morreu
impune. Mas o que o cuspe pode ter denunciado? A impossibilidade da
palavra, pelo seu esvaziamento. Para além de debater se o cuspe é
aceitável ou não, há que se decifrar o cuspe.


Quando alguém democraticamente eleito pode homenagear um assassino em
série da ditadura e lembrar sadicamente que ele era o “pavor” da
presidente que está sendo afastada e, em seguida, cometer homofobia, e
nada se move além de mais palavras, é porque as palavras se esvaziaram
de poder. O cuspe não acertou apenas Bolsonaro, acertou muito mais.
Tendo apenas palavras mortas a seu dispor, palavras que não dizem,
talvez só tenha restado cuspir. E, assim, sem palavras após o 17 de
abril, manifestantes cuspiram e vomitaram sobre as fotos de
parlamentares Brasil afora.




A disputa em torno do “golpe” também aponta para o esvaziamento das palavras

Já escrevi mais de uma vez que considero o governo de Dilma Rousseff
indefensável em aspectos fundamentais, e que o do vice-conspirador Michel Temer
é a sua continuação piorada. Afastar uma presidente democraticamente
eleita sem base legal, porém, desrespeita o voto da maioria e custará
muito caro ao país. Assim, sou contra o impeachment. Mas a disputa em torno da palavra “golpe
– se é golpe ou não o processo de impeachment – me parece apontar
também para o esvaziamento das palavras. É imperativo perguntar, para
evitar o risco das simplificações que podem servir para o pragmatismo de
agora, mas cobrar um preço elevado depois: onde está o golpe? E quem
são os golpeados neste país?


Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que
têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias, dos que têm
seus lares destruídos pelas obras primeiro da Copa, depois das
Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes
empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa da
sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça, dos que o Estado
apenas finge ensinar em escolas caindo aos pedaços, negando-lhe todas as
possibilidades, dos que são expulsos de suas terras ancestrais e
empurrados para as favelas das grandes cidades, dos que têm seus cobertores arrancados no frio
para não “refavelizar” o espaço público. Basta seguir os que morrem e
os que são mortos para saber onde está o golpe e quem são os golpeados.
Como nos lembrou Sheila da Silva, a pietà negra do Brasil, o sangue diz o
que as palavras já não são capazes de dizer.


Esta crise não é apenas política e econômica. É uma crise de
identidade – e é uma crise da palavra. São as palavras que nos arrancam
da barbárie. Se as palavras não voltarem a encarnar, se as palavras não
voltarem a dizer no Brasil, o passado não passará. E só nos restará
pintar o rosto com sangue.

O golpe e os golpeados | Opinião | EL PAÍS Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário