sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Jessé Souza

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza - 22/09/2017 - Ilustríssima - Folha de S.Paulo




RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata,
pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal,
conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso
reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento
definitivo que nos marca como sociedade até hoje.




*
Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre
(1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um
jeito específico de ser. Para o autor de "Casa-Grande e Senzala" e para
seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.





Sérgio Buarque de Holanda
(1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura
negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como
vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e
quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique
Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.





Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.





Reprodução
Obra de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
A "esquerda", entendida como a perspectiva que contempla os interesses
da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura
liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas
esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade,
permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação
dominante.





A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse
dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a
ambição de meu novo livro, "A Elite do Atraso - Da Escravidão à Lava
Jato" [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a
escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de
corrupção, como se convencionou sustentar.





Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção
transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa
narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel
principal.





Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina
a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia
nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção
moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de
cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o
país inteiro acredita nessa bobagem.





ESCRAVIDÃO





Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de
que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de
instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.





No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a
escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico).
Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje,
com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas:
monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos,
refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.





Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A "ralé de novos
escravos", mais de um terço da população, é explorada pela classe média
e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua
energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração
abjeta.





Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o
investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e
cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e
condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.





A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos
escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser
destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam
ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente
uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.





A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite
escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo.
Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular
os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o "quero o meu agora", mesmo que a custo do futuro de todos.





É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também
ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o
bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da
população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.





INTERMEDIÁRIAS





Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa
sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois
novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe
trabalhadora e a classe média.





Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o
tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu
contraposta a um desafio novo.





A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea.
O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de
classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois
abrigava múltiplas posições ideológicas.





A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava
fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma
única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais
abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não
controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la
como arma.





O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe
média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de
classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.





O acesso ao poder simbólico exige a construção de "fábricas de
opiniões": a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para
"convencer" seu público na direção que os proprietários queriam, sob a
máscara da "liberdade de imprensa" e de opinião.





A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria
conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados:
os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP,
destinando-a a ser uma espécie de gigantesco "think tank" do liberalismo
conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa
vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.





LAVA JATO





Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder
social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço,
assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se
contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe
média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos
partidos ligados às classes populares.





A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de
interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania
popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal,
como os pobres ("coitadinhos!") não têm consciência política, a
soberania popular sempre pode ser posta em questão.





É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir
da sua "respeitabilidade científica" e, depois, pelo aparato legitimador
midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.





As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas
pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à
elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.





Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do
século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital
econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural
valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20%
de privilegiados contra os 80% de excluídos.





A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.





Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania
popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas
supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da
intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou
invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede
Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade
social entre nós.





O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a
luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um
fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.





Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se
torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a
raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar
politicamente.





Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de
justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça
real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.





O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter
o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança
da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da
própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um
recurso social escasso e literalmente impagável.





JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de
Heidelberg (Alemanha), é autor de "A Tolice da Inteligência Brasileira" e
"A Radiografia do Golpe" (Leya), além de professor de sociologia da
UFABC.

Nenhum comentário:

Postar um comentário