sábado, 17 de junho de 2017

"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça"

"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça" — CartaCapital



"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça"


por Deutsche Welle



publicado
14/06/2017 00h38,


última modificação
13/06/2017 13h47

Historiador diz que é preciso combater uma sociabilidade que se baseia
em tratar o público como o privado: "Há uma elite que se considera
superior"


Por Clarissa Neher


Há pouco mais de 80 anos do lançamento do clássico Raízes do Brasil,
o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, que não distingue o
público do privado, parece ainda presente na sociedade brasileira,
apesar das previsões do intelectual que a cordialidade desapareceria com
a industrialização.


Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda apresentou pela primeira vez o
conceito, resultado de uma sociedade rural autoritária caracterizada
pela família patriarcal. Segundo o intelectual, esse homem cordial
dominou as estruturas públicas do País, usando-as em benefício próprio.


No entanto, não foi exatamente isso o que ocorreu. Para o historiador
João Cezar de Castro Rocha, a cordialidade é uma característica de
sociedades hierárquicas e desiguais. Em entrevista à DW Brasil, o autor dos livros Literatura e cordialidade: O público e o privado na cultura brasileira e Cordialidade à brasileira: mito ou realidade? debate o conceito de homem cordial e sua ligação com a corrupção.


"O problema da corrupção endêmica no Brasil
só terá solução quando efetivamente constituirmos uma nação, quando em
lugar de homens cordiais e elites que se consideram superior aos outros,
nós formos de fato todos cidadãos", destaca Castro Rocha.


DW Brasil: O conceito de "homem cordial"
parece mais atual do que nunca. Mas Sérgio Buarque de Holanda previa que
ele desapareceria com a industrialização e o fim da sociedade rural. Na
sua opinião, por que ele não desapareceu?



João Cezar de Castro Rocha: Eu proponho que, na
verdade, o homem cordial não é apenas fruto de uma sociedade agrária,
mas característico de uma sociedade hierárquica e desigual, como a
sociedade brasileira, que foi fundada sobre o trabalho escravo e que
ainda hoje mantém a consequência do longo período de escravidão. Então, o
homem e a mulher cordiais não apenas permaneceram, como pelo contrário,
cresceram e estão muito fortes.


DW: E isso é visível também na política?


JCCR: A atual política brasileira, marcada por uma
polaridade radical, por intransigência inédita e por uma intolerância
completa é absolutamente cordial no sentido próprio do termo, ou seja, é
uma política que se faz com afetos, com estômago e não com a cabeça.


DW: A corrupção seria característica própria do "homem cordial"?


JCCR: Seria ingenuidade imaginar que o homem cordial
é por vocação mais corrupto do que a seriedade alemã ou puritanismo
anglo-saxão. A corrupção faz parte de toda e qualquer estrutura de poder,
mas a questão central de uma corrupção que pode ser caracterizada como
cordial é a sua associação com a ideia da hierarquia e da desigualdade.


No Brasil, historicamente, há uma elite que se considera realmente
superior ao restante da população e que, por isso, considera ter direito
a saquear a coisa pública. Nós não temos um Estado no sentido próprio
do termo, temos é um aparato estatal apropriado pelas elites.


DW: O senhor fala da corrupção nas elites,
mas é possível afirmar que ela ocorre também nas camadas mais baixas,
que é algo generalizado?



JCCR: É preciso diferenciar a corrupção de uma
sociedade que tem um cotidiano esquizofrênico. Em 1808, quando a família
real veio para o Brasil, não havia casas suficientes, e o rei mandou
pintar nas portas de algumas a inscrição "Propriedade Real”, PR,
obrigando os donos a deixá-las para os nobres portugueses. O povo
traduziu PR como "ponha-se na rua”. A história da cultura brasileira é
uma oscilação constante entre propriedade real e ponha-se na rua.


Existe uma lei e sabemos que ela não é cumprida porque não há as
condições práticas para cumpri-la, ao mesmo tempo, não podemos
verbalizar o caráter vazio da lei, então, desenvolvemos uma sociedade
profundamente esquizofrênica no sentido próprio do termo. Dizemos A
sabendo que precisamos fazer B. Eu faria uma diferença entre o princípio
esquizofrênico e a corrupção.


DW: Qual seria essa diferença?


JCCR: Há um princípio de maleabilidade que pode levar a uma corrupção, mas eu diria que corrupção hoje no Brasil
é a apropriação privada dos recursos públicos. Não dá para comparar o
senhor Emilio Odebrecht, roubando bilhões de dólares, com o pobrezinho
do brasileiro que no serviço público oferece um cafezinho para o
atendente. Se dissermos que tudo é a mesma corrupção é mais um meio que a
elite tem de se desculpar.


DW: Mas o jeitinho, esse desvio do cotidiano, não legitimaria de alguma forma a corrupção nas grandes esferas?


JCCR: Acho que isso é um equívoco, pois o que está à
disposição da elite brasileira, das empreiteiras, dos partidos
políticos e de políticos não é um jeitinho,
é um tremendo jeitão, não tem comparação. Além disso, a sociedade foi
organizada de uma forma esquizofrênica, o Estado sempre impôs ao povo
inúmeros PR e o jeitinho é uma estratégia, em alguns casos, para driblar
a impossibilidade de cumprir o PR.


Mas se simplesmente legitimarmos o jeitinho, nós estaremos
favorecendo a corrupção. Acho importante que, no cotidiano, o brasileiro
comece, por exemplo, a apenas atravessar o sinal quando ele estiver
aberto para pedestres. É muito importante uma mudança de cultura.


DW: Como seria possível acabar com esse ciclo desta corrupção generalizada?


JCCR: Do ponto de vista do Estado brasileiro é preciso acabar com esse discurso tolo de que tem muito Estado no Brasil,
pois não tem. O Brasil tem Estado de menos para o que de fato importa. É
preciso ainda implementar mecanismos eficientes de controle que tenham
como base a transparência.


Do ponto de vista da sociedade é começar uma discussão a longo prazo
que necessariamente deve passar pela educação e, sobretudo, por uma
consciência crescente para mudarmos nossa forma de agir no trato diário.
Por exemplo, não posso defender a universidade pública e não dar minhas
aulas.


O problema da corrupção endêmica no Brasil só terá solução quando
efetivamente constituirmos uma nação, quando em lugar de homem cordiais e
elites que se consideram superiores aos outros, nós formos de fato
todos cidadãos.


DW: O que é preciso combater?


JCCR: É preciso combater uma sociabilidade que se baseia em tratar o público como o privado,
e isso são o homem ou a mulher cordial. A sociabilidade cordial é
movida pelo coração, tanto ama quanto odeia, tanto pode ser autoritária
quanto afetiva, mas impõe fundamentalmente à ordem pública a lógica do
privado.


Sem dúvida para superar esse tipo de corrupção precisamos fazer que o
Estado brasileiro finalmente seja público e deixe de ser um parque de
diversões para que as elites econômicas, políticas e financeiras deste
País continuem tirando os recursos públicos como se fossem privados.

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