sábado, 22 de abril de 2017

Vazamentos da PF

ConJur - Vi vazamentos da PF e nada fiz, porque entendi qual foi o propósito



Vi vazamentos da PF e nada fiz, porque entendi qual foi o propósito

Subtema: Constituinte — porque se trata de um haraquiri institucional

Leio que, face à delação da Odebrecht (a Moab – Mother Of All Bargains)
e do desgaste da política (e do Direito), muita gente começa a
ressuscitar a tese da Assembleia Constituinte. Na crise, não criamos.
Atalhamos. Explico: quando vejo o jornal Estadão colocando a tese em editorial, fico arrepiado. Afinal, o mesmo Estadão festejou a derrocada da Constituição de 1946 ao declarar apoio ao golpe de 1964, postura também seguida pela Folha e outros veículos como, é claro, O Globo (e também a OAB).

É
isso que me preocupa. Vejam no que deu. Demoramos mais de 25 anos para
voltar à democracia. Construímos uma Constituição democrática. Mas não a
cumprimos. Houve um incentivo ao seu descumprimento. Pronto. A solução?
Simples: façamos uma nova. Bingo. Para um problema complexo, uma
resposta simples... E errada.

Um sintoma: lembro de uma palestra
de um jovem que assisti há uns dez anos. Ele era mestre e doutorando em
Direito, usava kit carreira jurídica (terno bem cortado e chave de Audi
A4 à mostra) e gritava: “Interpretar a lei é um ato de vontade; tudo é subjetivo; não há verdades
(onde esse menino estudou?). Além de o desmentir publicamente —
confesso que cheguei a ser deselegante (não faria isso de novo, hoje,
desse modo rude) —, quando terminei minha fala, ainda fiz uma
observação: “Isso tudo ainda vai sair muito caro para a democracia”.
Dito e feito.

Minha lhana crítica

Nesta coluna, quero dizer o que penso sobre tudo isso, com todo o
respeito e lhaneza aos que propugnam por uma nova Constituição. Fui rude
com o jovem. Já não sou assim. Portanto, por favor, quem assim pensa
não se sinta nem acusado nem ofendido. Sinta-se homenageado, porque
suscitou o debate, que, por óbvio, transcende à tese de uma nova
constituinte. Mas transcende, mesmo.

Assim, sigamos. Primeiro:
quem faria a nova Constituição? Legisladores da Noruega? Quem elegerá os
constituintes? Os 35 partidos, existentes, aliás, por um julgamento
ativista do STF, que disse ser inconstitucional (até hoje não entendi
por que) a cláusula de barreira. Ah: quem será que colocou os atuais
parlamentares no Congresso? Vamos trocar de eleitor?

E vejam a
bizarrice. Temos mais de mil faculdades de Direito, dezenas de milhares
de professores (de Direito), carreiras jurídicas que devem chegar a duas
dezenas, dependendo de como contarmos as advocacias públicas (todas,
incluindo as Defensorias, ganhando mais de R$ 22 mil de salário inicial,
algumas carreiras ainda recebendo honorários e incentivos por cobrança
de tributos), além da pesada máquina dos tribunais de Contas,
Controladorias etc., e o diagnóstico é o de que temos de fazer uma nova Lei Maior? Fracassamos? Mas, então, a coisa vai mal por causa da CF ou por que falhamos nas nossas atribuições de juristas?
E não seria (também) porque fiscalizamos mal, burocratizamos a máquina
ao extremo, criamos cargos a mancheias, transformamos o país em uma
“concursocracia”? Os políticos “fizeram a parte deles”, se me permitem o
sarcasmo... Mas os juristas também “fizeram a sua parte”. E como
fizeram.

Querem ver? A primeira falha do espectro jurídico foi a de não saber identificar o seu objeto — o direito.
Um bom positivista contemporâneo poderia ensinar muito a essa gente que
confunde direito e moral (no plano analítico, é claro — mas que é
extremamente útil). Qual é o erro? Porque respondemos a qualquer assunto
jurídico com a opinião pessoal ou com a moralização da resposta. Antes do direito... Colocamos a moral, a política etc. Resultado: a fragilização do objeto — o direito.
Agora mesmo, quando defendemos uma nova Constituição, estamos,
nitidamente, raciocinando moralmente. Dizemos: a culpa é da
Constituição. “Façamos uma nova.” Fetiche da lei. Logo quereremos
substitui-la por outra. Constituição virou um produto descartável. Minha
resposta: não adiantará, porque, com essa comunidade jurídica, com
esses operadores (sic), pode ser feita a constituição ideal-fundamental, a Grundverfassung ou a Moal (Mother Of All Laws – a mãe-de-todas-as-leis) e... Nada mudará.

Como
culpar a Constituição pela incapacidade dos juristas de aplicar o
Direito, ensinado nas faculdades por — pelo menos uma parcela razoável —
professores mal preparados (estou sendo generoso), que “ensinam” as
maiores barbaridades aos incautos alunos? Esses incautos logo se formam e
fazem concursos, depois de passarem por cursinhos ministrados (em
grande parte deles) por professores que ensinam por decoreba e por
pegadinhas (para dizer o menos).

De que adianta uma nova
Constituição se, nos concursos públicos para as carreiras que a irão
aplicar, são feitas perguntas que não passam de pegadinhas e exercícios
de memorização, sem falar nos Caios, Tícios, teorias da graxa,
pamprincipios, hiperbolismos etc.? Chegamos a este ponto: técnicas de chutes para concursos. Tem muito disso (aqui). E ensinam crime tentado com “beijinho no ombro” (aqui). Tem até um professor (que também é juiz) que inventou a técnica do chute consciente.
Bingo. O Brasil é demais. Afora tudo o que mostrei na coluna sobre a
concursocracia e a teoria da graxa, descubro a cada dia coisas novas,
como Jusjitsu – a arte do concurseiro.
É, de fato, precisamos de uma NCF... Para nela fazer constar um
dispositivo para impedir esse tipo de coisa. Repito: a culpa é da
Constituição? Do CPP? Do NCPC? Do “badanha”? Do “bispo”?

Como
querer uma nova Constituição se acabamos de aprovar um NCPC do qual
sequer conseguimos fazer cumprir dispositivos que determinam o básico —
como o dever de coerência e integridade, além da fundamentação
detalhada? Quem está cumprindo o artigo 10? E o 489? E o 926? Então, de
novo: quem vai aplicar a NCF? Os que hoje não cumprem o NCPC ou a atual
Constituição? Os que não cumprem o CPP?

Imagino o futuro: sai a
NCF e, dias depois, as livrarias estarão atulhadas de novos livros. E
centenas de congressos. E fóruns (permanentes) para elaboração de teses
sobre os dispositivos dessa NC (claro, as teses exigem unanimidade para
“valerem”). Bingo de novo. Ou não é assim? Desmintam-me. Nosso sonho é
voltar ao século XIX, no positivismo clássico: dar respostas antes das perguntas. Fazer conceitos sem coisas. Imitar o legislador (e “fazer-melhor-que-ele”). E escrever novos livros tipo: NCF Facilitada; NCF Descomplicada... E começa tudo de novo.

Pergunto,
lhanamente: quem vai aplicar e doutrinar sobre essa tal NCF? Os que,
mesmo que o NCPC tenha dito que não há mais livre convencimento, dizem —
e escrevem — que o legislador é mero detalhe (há gente que pensa como
Llewellyn, em The Bramble Bush, para quem “leis constituem lindos brinquedos”) e que o que vale é o livre convencimento como persuasão racional?
Ora, ora, meus caros noruegueses e/ou dinamarqueses... Se fazemos isso
com o NCPC, assim agiremos em relação a uma eventual NCF. Para, de novo,
dizermos o que queremos sobre o seu conteúdo. Para exercermos a nossa Wille zur Macht (vontade
de poder). Para ficarmos bradando em palestras e vender muitos livros,
dizendo que o Direito é, ao fim e ao cabo, o que o Judiciário diz que
ele é.

Já vi esse tipo de filme. Marcelo Cattoni, Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e eu já escrevemos sobre isso aqui na ConJur.
E eu quero dizer que lutei muito pela Constituição de 1988. Esta que
muitos dizem já não ter mais serventia. Fiz 37 palestras sobre
Assembleia Constituinte entre 1985 e 1987.

Temos de apostar na
democracia. No Estado (Democrático) de Direito. E, mesmo no entremeio de
uma crise desta monta que faz o delírio da Globo News e do Jornal Nacional,
mantenho o otimismo. Não devemos ter a ilusão de que possa existir uma
sociedade sem vícios. Aliás, sempre lembro da fábula mais liberal do
mundo, a das abelhas (Barão de Mandeville): vícios privados, benefícios públicos (que o pessoal da teoria da graxa deveria ter lido).

Para
quem quer uma “nova Carta”, pense em como seria a parte que trata dos
direitos fundamentais. Já imagino um dispositivo dizendo: pena de morte e
perpétua poderão ser estabelecidas após aprovadas por plebiscito;
delações poderão ser feitas em todas as modalidades de crimes,
dispensada a presença de advogado se o réu desde logo optar por delatar
ou aceitar a barganha; para crimes cujas penas são superiores a 10 anos,
a prisão será obrigatória (repristinando o que havia antes da lei
Fleury)... E assim por diante. E um dispositivo será assim: acima
das leis e da CF está a justiça e o direito natural; nos casos de
flagrante injustiça da lei, aplicar-se-á a fórmula Radbruch
(isso
dará boas questões para os futuros concursos no novo regime
constitucional — os cursinhos passariam a ensinar a fórmula Radbruch...
E logo fariam com ela o que fizeram com a ponderação; e também fariam
paródias musicais). Bolsonaro poderá ser o relator.

Moral da
história: antes de desistirmos das leis e da atual Constituição, seria
bom que começássemos por cumprir o ordenamento. Seria bom receber as
denúncias sem usar formulários tipo “defiro os requerimentos do MP acaso
existentes”; passar a cumprir o CPC (inclusive fazendo-o valer no
processo penal no que tange à fundamentação); não responder os embargos
de declaração como se respondia no CPC/73; parar de inverter o ônus da
prova em processos de furto e tráfico; fundamentalmente, parar de
corrigir o Direito (sim, o Direito, o produto com o qual trabalhamos,
porque, ao que sei, direito não é moral, não é política, não é filosofia
moral etc. — ler aqui)
a partir de nossas opiniões pessoais. Se cumprirmos as leis e a CF,
chegaremos à conclusão de que uma lei só pode não ser aplicada em seis
hipóteses (ver aqui). É o primeiro passo.

Necessárias críticas à entrevista da ex-ministra Eliana Calmon

Sei que entrevistas podem falsear o que o entrevistado falou. Mas como
não houve desmentido, presumo que o que está escrito foi dito. Falo da
ex-ministra Eliana Calmon, que disse:

“Hoje,
o Judiciário mudou inteiramente. Todo mundo quer acompanhar o sucesso
de Sergio Moro. Os ventos começam a soprar do outro lado. Antigamente, o
juiz que fosse austero, que quisesse punir, fazer valer a legislação
era considerado um radical, um justiceiro, como se diz. Agora, não. Quem
não age dessa forma está fora da moda. Está na moda juiz aplicar a lei
com severidade” (ler aqui).
Pois é, ministra. Mas, o que é isto — cumprir a lei com severidade?
Ao que entendi, cumprir “com severidade” a lei é “condenar”. E talvez
“aplicar a lei com severidade” seja o que o STJ fez na semana passada,
ao decidir que o condenado pode cumprir pena em regime mais grave do que
o do decorrente da pena (aqui). Ou o juiz que mandou desalojar 300 famílias (em 300 mil hectares) li-mi-nar-me-nte
e sem ouvir o MP? Mas, segundo a decisão, foi sob “a proteção de
Deus”... Ah, bom. O que é isto — cumprir a lei com severidade (sic)? É receber denúncia em formulário? É inverter o ônus da prova? Como é mesmo ficar “na moda”[1]? Eu sou démodé. Ainda uso pomada Minancora (aqui).

Pode ser também que estar na moda é (deixar) vazar informações, que, para a ex-ministra, são meros pecados veniais (sic). Pecadilhos (por isso não surpreende que um site tenha transmitido ao vivo
o interrogatório de Marcelo Odebrecht diretamente da audiência de
Curitiba para o mundo). De novo: como não houve desmentido, tenho que o
que a ex-ministra disse foi exatamente o que está na entrevista. Vejam a
gravidade: ela confessou que, como ministra do STJ, “vi
muitas vezes o vazamento de informações saindo da Polícia Federal e
nada fiz contra a PF, porque entendi qual foi o propósito
”.
Veja-se: “Vazamentos de informações”. Mas, vejam a ironia da coisa: o
propósito era para “o bem”. Pergunto: como descumprir leis pode ter um
bom propósito? No final da entrevista, a ex-ministra diz que, como
juíza, “sempre agi como Sergio Moro”. Sem comentários adicionais de
minha parte.

Numa palavra: parece que estar na moda — no Brasil —
é aceitar a tese de que “os fins justificam os meios”. E tem gente
querendo fazer uma NCF... Quem vai cumprir a NCF? Lembro-me, de novo, do
jovem processualista palestrante que gritava que “interpretação é um
ato de vontade” e outros quejandos. De fato, lendo a entrevista da
ex-ministra, vejo que o menino com seu kit carreira jurídica tinha chão
fértil para fazer florescer suas teses.

Mas temos que resistir. Por isso escrevo todas as semanas esta coluna hebdomadária.


[1]
O brilhante promotor de Justiça e doutor em Direito Elmir
Duclerc resumiu o que ele denominou de pérolas do surrealismo processual
penal contemporâneo (publico aqui uma parte, sem sua licença): 1)
condução coercitiva que não implica restrição à liberdade de ir e
vir; 2) presunção de inocência que não impede a execução provisória da
pena; 3) regime inicial que já inicia mais grave; 4) ônus de provar sem
provas; 5) gravações ilegais e sigilosas publicadas e audiências de
instrução (públicas) que não podem ser gravadas; 6) Estado Democrático
com medidas excepcionais; 6) delação “espontânea” de quem está preso. E
eu poderia acrescentar um rol de outras pérolas. Que ocorrem nas demais
áreas. Bem, algumas já estão delineadas na coluna.

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