domingo, 12 de fevereiro de 2017

A crise brasileira, na visão de Antonio Negri | Congresso em Foco

A crise brasileira, na visão de Antonio Negri | Congresso em Foco



A crise brasileira, na visão de Antonio Negri

Filósofo italiano critica PT por
reação aos protestos de 2013, por se afastar das populações
metropolitanas e dos trabalhadores negros, pela passividade diante do
crescimento da direita evangélica e pela “completa ignorância” das
mudanças que se passam hoje na divisão do trabalho














Foto: Verena Glass
Para onde vai o PT? Para onde vão as lutas?
 
Antonio Negri *


Negri:
"A ideia de governar por meio da corrupção, ou seja, retomando o hábito
da direita, não parece ter perturbado o projeto do PT desde o
princípio"
Em viagem a trabalho para o Brasil encontrei políticos e intelectuais
brasileiros, apresentei a eles alguns questionamentos e recebi
respostas distintas e às vezes contraditórias sobre a crise
constitucional em curso e sobre a derrota do PT (em âmbito parlamentar
e, por último, nas eleições municipais). A partir das respostas a essas
questões, gostaria de tirar algumas conclusões provisórias.


Meus interlocutores eram pessoas de esquerda, de uma esquerda
brasileira hoje muito fragmentada. Primeira pergunta: por que o PT
reprimiu as lutas modelo Occupy de 2013-2014 a ponto de desvirtuar o seu
significado e permitir que a direita tivesse hegemonia sobre elas? A
resposta que recebi dos expoentes do PT foi unívoca e terrivelmente
decepcionante.


Por parte de todos – este é um ponto realmente grave, por parte de
todos sem nenhuma hesitação, sem qualquer arrependimento (ainda que
muitas vezes com o embaraço da mentira) – obtive uma só resposta: esses
movimentos ameaçavam desde o início a manutenção da nossa
governabilidade. Não vou nem considerar comentários sem sentido, como
quando alguém disse que as lutas de 2013 haviam sido inspiradas pela
CIA, e isso não somente no Brasil, mas também no mesmo ciclo de Istambul
e do Cairo… É claro que, a partir dessa declaração, evidentemente
insensata, dá para concluir que o PT já tinha uma relação ruim com as
populações metropolitanas, que, envolvidas na crise econômica do país e
tocadas pela inflexão neoliberal das políticas de Dilma, pediam desde
2013 ao governo e ao município uma mudança de linha.


A segunda pergunta foi: por que tantos jovens negros continuam
morrendo? Não me foram dadas respostas sobre esta questão. Como sempre,
desde que visito o Brasil, a questão segue completamente silenciada. A
incompreensão dessa situação, a falta de vontade de assumi-la como
problema fundamental, foi determinante na impotência do PT, não digo
para resolver, mas simplesmente enfrentar o problema das favelas (fora
da dinâmica do capital imobiliário), e agora precipitou um vazio de
relações que não só permitiu, mas facilitou a entrada da direita
religiosa (e não religiosa) em meio ao proletariado negro.


A função das igrejas evangélicas é subvalorizada em sua capacidade de
organizar os novos estratos da classe média dentro e fora das favelas e
isso permitiu a penetração ideológica da direita e de uma propaganda de
“valores” totalmente subjugada a propostas reacionárias e/ou de
restauração da moralidade etc.


Provavelmente aqui está o nó de um dos pontos centrais da crise do
PT, sua perda de contato (ou de alguma forma da capacidade de
endereçar-se) com o proletariado negro do sistema industrial em crise
(se não em dissolução) nas periferias das grandes metrópoles (nos
estados de São Paulo e Minas Gerais, particularmente). É dentro da
ex-classe operária (dividida agora entre nova classe média e multidões
desempregadas e precarizadas) que se revela a crise mais pesada para a
esquerda – lá onde ela era hegemônica.


A perda de hegemonia nesses estratos do proletariado metropolitano é
sentida por quadros do PT como uma traição. Olha-se com espanto a


Rovena Rosa / Agência Brasil
Por que tantos jovens negros continuam morrendo?
emergência
e afirmação de novos “quadros” negros da direita. Em suma, parece que
há uma completa ignorância em relação às modificações estruturais na
produção e na divisão do trabalho metropolitano – ao qual se agrega o
abandono, como veremos, dos estratos proletários mais pobres.
Terceira pergunta: por que o PT não conseguiu responder ao ataque da
direita (desde 2013) fazendo com que as organizações de massa ligadas ao
partido também reagissem? Aqui as respostas mostram que também com as
organizações tradicionais (a central sindical CUT, o movimento camponês
MST etc.) a relação já havia se tornado irrelevante, ou talvez
subsistisse apenas para fins de propaganda.


Os sindicatos tornaram-se corporativizados, com os mesmos problemas
que existem na Europa diante da ofensiva “empreendedora” do empresariado
financeiro; o MST tornou-se frustrado pela recusa ou pela maneira lenta
e contraditória das expropriações fundiárias (e, consequentemente,
radicalizou-se em um surdo ressentimento em relação a um governo que não
podia, contudo, abandonar para não ficar sujeito ao contra-ataque das
forças do latifúndio agrário). Sindicatos industriais e rurais
tornaram-se mecanismos de controle político e, possivelmente, até de
repressão. Como pedir a estes uma reação organizada frente à prevalência
da direita? Quanto aos movimentos sociais ou ao povo, estes também
haviam sido duramente reprimidos.


A ofensiva da direita


Aqui provavelmente dá para compreender a conquista da hegemonia nos
protestos metropolitanos por parte de uma nova direita que, pela
primeira vez desde 2014, consegue levar às ruas centenas de milhares de
pessoas em meio à ausência de qualquer resposta antagônica. O elemento
que incendeia e permite à direita o predomínio nas ruas está ligado à
campanha contra a corrupção que, de maneira conjunta, Poder Judiciário e
grande imprensa desencadearam contra o PT, colhendo com perfeição (“a
tempestade perfeita”) o momento de crise no relacionamento do partido
com a massa.


O modelo utilizado para o ataque contra o PT por parte do Judiciário e
da grande imprensa é exatamente o mesmo que o da operação Mãos Limpas
(o juiz Moro, que representa o centro da iniciativa judiciária, havia
escrito e teorizado a respeito).


Duas breves reflexões sobre isto: a corrupção de boa parte das elites
do PT nasce da necessidade de equilibrar a “maioria” no Parlamento
brasileiro, onde o PT nunca obteve maioria; complica-se, então, pelo
apetite constituído no hábito da corrupção política de enriquecimento
pessoal de muitos expoentes do partido.


Trata-se, contudo, de corrupção generalizada do sistema político
brasileiro: a força e a astúcia da direita (e do sistema
jurídico/midiático) foi lançar a denúncia sobre o governo do PT. Parece
que agora, para além do desastre do PT, a magistratura está
endereçando-se contra setores da direita – sem, todavia, exercitar a
mesma eficácia terrorista que se produziu em relação ao PT.


Seguem duas perguntas. Uma primeira: por que com três presidências o
PT não lançou mão de uma reforma constitucional que garantisse a
governabilidade sem a necessidade de corromper? E em segundo lugar: por
que naquele mesmo período não construiu um sistema de comunicação/mídia
etc. que permitisse ao PT pelo menos alguma defesa contra os dinossauros
midiáticos (Globo, Folha etc.) deste país? À primeira
pergunta, obtive respostas ambíguas e confusas. Para alguns, não seria
possível mexer na Constituição de um país que acabara de sair de um
longo parêntese ditatorial.


Consequentemente, a ideia de governar por meio da corrupção, ou seja,
retomando o hábito da direita, não parece ter perturbado o projeto do
PT desde o princípio. Um sistema constitucional em que o presidente é
eleito com 60% dos votos – tais os números do sucesso de Lula –, numa
república federal semipresidencialista em que o Congresso e o Senado não
alcançam – num sistema eleitoral quase proporcional – nunca a maioria
(presidencial) necessária para o funcionamento legislativo e executivo, é
um monstro constitucional, condenado à instabilidade e a negociatas
contínuas – deixo que imaginem os métodos.


Quanto à questão midiática, muitos dos meus interlocutores foram
menos reticentes. Parecia-me entender que houve, desde o início dos
governos do PT, um acordo tácito de fair play com os
conglomerados midiáticos: nenhum ataque a eles por parte do governo e
recíproca lealdade por parte da mídia. Esse acordo se rompeu assim que a
direita conquistou as ruas e a capacidade de expressar uma oposição
orgânica. Naturalmente, não estou imputando à ingenuidade do PT a
responsabilidade pela queda do seu governo, da sua força e, sobretudo,
da perda de hegemonia.


O problema está, evidentemente, em outro lugar, na incapacidade
política de resistir à ofensiva neoliberal, de abrir uma resposta
multitudinária (como aquela acenada em 2013 por parte dos movimentos
metropolitanos), mas sem dúvida essas ingenuidades, que se tornaram
estruturais, também não ajudaram.


Crise econômica e a classe média


Uma nova questão: por que a crise econômica mundial foi percebida com
tal violência no Brasil a ponto de se tornar incontrolável, ou seja,
controlável somente com instrumentos neoliberais? Aqui a resposta foi
mais precisa. Temos aqui os documentos, por parte do PT, que ilustram a
situação.


Dizem: ganhamos as eleições presidenciais de 2014 com uma campanha à
esquerda (eu acrescento: tentando retomar o contato com os movimentos
reprimidos em 2013), mas Dilma, apenas reeleita, inverte a sua política,
intimidada pelas forças da crise e da recessão. Adota as medidas
macroeconômicas clássicas, mas de uma tal maneira que, incidindo sobre
as políticas energéticas, expõe os nervos das forças financeiras globais
e delas provém uma dura reação.


Vou poupá-los aqui da narração do que seguiu, pois não é nada além
dos acontecimentos, ou seja, a formação de um bloco de oposição que vê o
partido tradicionalmente aliado ao PT (o PMDB) converter de súbito sua
linha em termos neoliberais; uma tentativa de Dilma de corrigir a linha…
imediatamente rompida. É como dizer que o omelete neoliberal,
timidamente provado, não caiu bem para o PT, mas, em vez disso, acabou
imposto goela abaixo pela direita na forma de um “golpe de Estado” – uma
direita agora capaz, esta a sua “novidade”, de identificar políticas
financeiras no cenário global e privilegiar medidas que simplesmente
favoreçam os ricos, como fazia tradicionalmente.


Mas como é triste ouvir homens que foram militantes, marxistas,
companheiros de movimento interpretarem tudo em termos de equilíbrio
governamental e parlamentar quando perderam a oportunidade de relançar
uma ação à esquerda e renovar o próprio partido, pois reprimiram as
lutas de 2013! Nota-se, além do mais, que em 2008 alguns deles haviam
considerado que, diante da crise, haviam construído suficientes
barreiras de defesa. Tratava-se, evidentemente, de uma ilusão.


Mas estavam sinceramente convencidos de que haviam criado um ciclo
independente [2]1 do comando financeiro do Norte – um ciclo financiado
pelo petróleo e defendido pelas alianças políticas dos Brics.


Outra questão: o que é esta bendita “classe média” que as políticas
do PT no governo criaram e que – incompreendidas – teriam cometido o
parricídio? Aqui as respostas que obtive levam todas ao ano de 2013.
Para alguns do PT, 2013 foi um delito que o povo cometeu contra si
mesmo, contra o poder popular – em suma, é como se uma besta imunda
houvesse então se revelado… e se revoltado.


É estranho como a incompreensão política das necessidades de
“contrapoderes” ativos na sociedade pode se revelar letal para as forças
da velha esquerda que se tornaram social-democratas! Há uma total
incompreensão sobre a ação de minorias nas multidões ativas. Falando com
ex-funcionários da prefeitura de São Paulo – já passada para a direita
nas eleições recentes – que provocaram acidentalmente os processos de
luta de 2013 ao se recusarem a reduzir o preço dos transportes, a minha
percepção da incapacidade de compreensão dos mecanismos elementares do
poder por parte desses burocratas foi confirmada.


Eles têm em mente uma dupla ilusão: que a legitimidade das lutas não
pode ir além da fábrica e que as lutas sociais são antidemocráticas.
Todo tecnocrata entende perfeitamente que a metrópole é, a esta altura, o
mecanismo central da acumulação capitalista, que a partir dela ocorrem
os processos de extração de mais-valia, mas não querem entender que a
força de trabalho metropolitana deve ser, por esse motivo, de alguma
forma reconhecida e eventualmente recompensada – que aquele “comum”
metropolitano explorado deve ser, de alguma forma, “remunerado” (por
exemplo, por meio da gratuidade do transporte numa metrópole de 18
milhões de habitantes, com uma extensão e com um caos que tornam a
mobilidade cotidiana uma tarefa árdua).


Contudo, não há uma resposta precisa ao que seja essa fantasmagórica
nova classe média. Sociologicamente, isso é o que já havíamos notado,
trata-se de uma classe operária que evoluiu em novas formas de
composição cognitiva e metropolitana, agora atacada pela crise e pelas
políticas neoliberais: ela defende conquistas que acreditava ter
adquirido e se rebela contra uma situação miserável que considera
inaceitável. Politicamente, essa multidão metropolitana é a classe
produtiva que quer ser reconhecida como tal.


Os movimentos representaram uma espécie de introdução à política e
esboçaram – numa aproximação ao poder – uma tentativa de exercício de
contrapoder. Em consequência, o fracasso dos atos dos movimentos,
decorrente da repressão, tolhe qualquer possibilidade de recuperação e
mediação no governo da cidade: abre caminho para ações de reivindicação
baseadas em poderes de mediação e de decisão não mais expressos pela
vontade democrática nem sujeitos a um controle democrático.


Seus instrumentos foram desconsiderados e/ou destruídos. Agregue-se
que tudo isso acontece sobre um território de ruínas. Em São Paulo,
simplesmente andando pela cidade ou em algumas periferias de classe
média, a miséria transborda: miséria do tipo “indiana”, pobres deitados
pelas ruas – não se sabe se dormindo ou morrendo –, pedintes por todos
os lados, violência noturna etc. Espetáculos intoleráveis.


A nova direita


José Cruz / Agência Brasil
"Nova direita é uma força indistinta, ferozmente anti-PT, muitas vezes antissindicatos..."
Nova
pergunta: qual é o peso e qual é o jogo dos vários componentes da
direita brasileira (a fascista antiga, a moderna neoliberal, a nova
direita militante, o fundamentalismo evangélico, a direita católica
etc.)? Se o elemento determinante da sublevação reacionária foi a classe
média em crise, por que o foi e como? Vou poupá-los dos testemunhos de
algumas pessoas, integrantes do PT, que encontrei: perseguidas e
submetidas a uma espécie de linchamento público, por parte de
transeuntes, de conhecidos, de lojistas – um deles me relatou ter sido
chamado de “comunista” e “ladrão” na classe executiva de um avião…
ameaças e manifestações sob as janelas dos “petistas”, denunciados como
coveiros da nação, a crise econômica foi imputada a eles… sem esquecer
(e certamente não deve ser esquecido) que se aguarda o encarceramento de
Lula.
Voltando a nós: uma novidade, por exemplo, é o fato de que uma
direita agressiva, bélica, se manifeste hoje pelas ruas. É desde os
tempos da queda da ditadura que algo assim não acontecia. A derrocada do
poder municipal do PT foi maciça nas eleições no começo de novembro de
2016; nenhuma cidade foi reconquistada nos locais em que o PT tinha
quase monopólio.


Então, o que é a nova direita? Em muitos aspectos, é algo
indefinível; no momento, é uma força indistinta, ferozmente anti-PT,
muitas vezes antissindicatos… os elementos ideológicos clássicos do
neoliberalismo atravessam-na. Aceita as pesadíssimas operações que o
novo governo decidiu de imediato: rigor orçamentário, flexibilização do
mercado de trabalho e, sobretudo, a decisão de limitar –
constitucionalmente – por vinte anos a progressão das despesas do Estado
no ritmo da inflação (idêntica operação feita por Macri na Argentina).


O déficit do sistema previdenciário justificaria, além do mais, o
fato de se fixar em 65 anos o limite de aposentadoria, até então fixo
nos 35 anos de contribuição de serviço. Estado mínimo, privatizações
etc. constituem uma perspectiva próxima.


Poderá esta direita manter-se por muito tempo ou ela também está
destinada a se dissolver? A respeito disso as opiniões são distintas, a
questão permanece em aberto, mas é claro que uma nova fase teve início. O
Brasil é um país potencialmente riquíssimo, mas sua estrutura social é
talvez mais injusta (quase absurda) que a de outros países com potencial
análogo.


Uma direita que mantenha intactas as atuais condições sociais é
impensável: a passagem do PT ao poder, neste sentido, marcou uma virada
decisiva. Para a direita, manter-se no poder poderá significar então
desorganizar as estruturas democráticas do Estado. Há algo de patético
nos meus interlocutores do PT, quando os repreendi pelo comportamento
durante os movimentos de 2013-2014: “mas nós defendemos o Estado de
Direito!”. Mas já não era mais defensável, isto eles não entenderam –
então melhor apostar nos contrapoderes dos pobres do que ser esmagado
pela contrarrevolução, pela desorganização autoritária do Estado de
Direito –, que a direita não pode não fazer.


O que é então a direita? É uma nova máquina de poder que não poderá
fazer outra coisa além de consolidar, em formas autoritárias, o controle
financeiro sobre o desenvolvimento do país. Além do mais, a este tronco
enxerta-se uma direita racista, escravagista, branca e oligárquica que,
desde sempre, mesmo quando não dominou, impôs no Brasil sua vontade.
Tendo presente este dado, é impensável no Brasil qualquer slogan do
tipo indignados que equipare direita e esquerda. No Brasil, antecipou-se Trump.


O futuro do PT


Eis que surge uma última pergunta: o que permanece do partido (PT)?
Por que não se produziu uma mudança de quadros, um rejuvenescimento do
partido? Por que se revelou um corpo mole contra o qual a estocada do
inimigo foi fácil e profunda? Minha opinião é que o PT não conseguirá
mais se apresentar como uma força hegemônica. Por melhor que seja,
virará um dos pequenos partidos de esquerda que pululam no cenário
brasileiro.


Distinto é o parecer de alguns dos dirigentes do PT, coisa não
irrelevante dada a inteligencia estratégica que continuam a expressar.
Eles sustentam que o partido deve renascer e é interesante a forma em
que imaginam este renascimento. Deve voltar ao passado, ou seja,
renascer como um movimento. Um movimento horizontal que se apresente em
todas as faixas da sociedade onde se trabalha e se é explorado.


A situação mudou completamente desde que o partido nasceu, e os
processos de exploração estenderam-se sobre toda a sociedade: é a partir
daí,


José Cruz / Agência Brasil
"O PT não conseguirá mais se apresentar como uma força hegemônica"
então,
que se deve agir. E, no entanto, junto à mobilização da sociedade, a
verticalidade de uma organização é necessária. O Brasil é um continente;
uma ação reformadora não pode avançar senão por meio de um governo, uma
verticalidade mediadora que saiba colocar-se à altura daquilo que exige
o país e da terrível complexidade das questões e desafios que
aparecerem.
E aqui eles reivindicam novamente o fato de terem conduzido uma
política qualificada, para além da revolução interna no Brasil, por
terem compreendido a necessidade de uma unidade continental da América
Latina e por terem iniciado uma aliança política intercontinental – a
dos Brics.


Representação horizontal, unidade continental, conexão com os países
do hemisfério sul contra o capitalismo financeiro: para eles, este ainda
parece ser o quadro no qual renascerá o partido. O que dizer, então,
sobre este ponto? O fato de que esses dirigentes não queiram discutir os
eventos de 2013 e que o atribuam à CIA é algo bastante cômico – como eu
já disse. É necessário, todavia, admitir que em quinze anos esses
homens mudaram o Brasil e tiraram da pobreza 50 milhões de pessoas.


Enfim, é necessário admitir que o PT sucumbiu ao seu próprio sucesso.
Na verdade, o que é diferente, na experiência brasileira em relação à
de outros países, é o fato de que a direção partidária do PT foi
derrotada pela classe média que havia se emancipado de uma condição de
subalternidade e que havia sido criada a partir das cinzas de uma classe
operária já envelhecida. Mais do que uma derrota política, o que está
acontecendo no Brasil parece ser para a velha direção uma nêmese
antropológica – e talvez o seja.


É incontestável também o fato de que aquelas novas gerações, que
poderiam representar mais um avanço na revolução brasileira,
tornaram-se, em vez disso, presas da ofensiva da direita neoliberal. Não
sei, portanto, o que acontecerá com o PT. Em todo caso, descarto que
possa se tornar de novo aquilo que foi em seu momento mais feliz, uma
força capaz de hegemonia. De todas as formas, não dá para jogar tudo
fora, como insistem alguns: há ainda muita vida ao redor desse partido e
qualquer movimento que queira assumir a tarefa de reconstruir uma
hegemonía deve manter isso presente.


Aqui se deve agregar uma defesa explícita do Lula “revolucionário” e
também uma leitura não irrisória do seu papel como “estadista”. Se de
fato é inaceitável que ele tenha considerado as manifestações de
2013-2014 como promovidas pela CIA, sem dúvida a iniciativa de Lula no
terreno latino-americano e internacional para garantir os fundos
internos e o desenvolvimento externo do projeto petista danificou, se
não rasgou, a teia de comando financeiro global e talvez tenha indicado
um modo de contornar o controle: construir unidades continentais
homogêneas a partir das quais se pode exercitar resistência e redefinir o
poder sobre o território global.


Quem não tem presente esses pressupostos não compreende o quanto o
processo de inserção do Brasil e da América Latina no sistema global (a
condição GlobAL[3])2é avançado. Lula intuiu uma passagem para
ruptura: unidade continental latino-americana, abertura – com tonalidade
não apenas tática – aos Brics, com particular interesse nos mais
“sujos” – África do Sul, Índia e, sobretudo, Irã. Esta intuição de Lula
(permitam que eu expresse respeito pela sua inteligência revolucionária)
é leninista.


Essa é mais uma razão para insistir sobre o fato de que uma
alternativa ao PT, além de se desenvolver no terreno da classe e de se
abrir para a compreensão da questão racial nos processos organizativos,
precisa recolher do PT aquela intuição política global (para além das
palhaçadas populistas do bolivarianismo e em ruptura com o refluxo
nacionalista do progressismo andino).


A reconstrução da esquerda


Movimentos de reconstrução? Não sei se existem, e também não sei se
novas experiências organizativas que tenham futuro estão em curso. É
certo, porém, que existe a sensação generalizada no Brasil de que há
algo de novo no ar – contrário e irredutível à direita neoliberal e
racista. É algo novo que vai além da expectativa de uma crise interna da
classe neoliberal do governo, supondo que a atividade judiciária possa
agora criar danos nessa direção. De todas as formas, não acredito muito
que algo novo possa surgir assim tão rápido.


Também no Brasil o ciclo neoliberal está distante de sua conclusão,
mas é evidente que o “golpe de Estado”, além de atingir o PT, atingiu o
sistema e a Constituição de 1988, enfraqueceu-o, talvez tenha bloqueado
as articulações e a capacidade de mediação do poder. É aqui, portanto,
que me parece possível ter em conta os encontros com os companheiros dos
movimentos, atentos à atual fase da crise. Foram eles que me indicaram
linhas de recomposição e de programa para reconstruir uma força
antagonista.


Eis aqui os pontos mais importantes que eu obtive:


1. A denúncia da violência da polícia, do Estado. Uma
violência que não se dirige somente contra a população negra, mas
contra qualquer iniciativa social – violência institucional, numa
situação em que a “exceção” é norma. É tocante a normalidade de uma
violência escravagista e colonialista, mantida e desenvolvida nas e
pelas instituições do Estado. Neste ponto, a atenção unânime
concentra-se no desenvolvimento de estratégias de resistência que
permitam evitar as condições de excepcionalidade sofridas.


Emerge aqui uma característica do debate autônomo brasileiro no qual,
dentro das qualificações de formas de luta e de programa, a demanda
pela construção de uma “política do desejo” se torna central.
Entendem-se assim ações políticas em que prevalecem componentes do
desejo, formas de agregação nas quais os pontos motores são os aspectos
criativos do fazer política. Pacifismo contra a polícia? Certamente não,
mas criações alegres de formas de resistência contra a violência e a
brutalidade cega do poder. Compreende-se aqui por que Félix Guattari
seja ainda tão citado no Brasil.


2. Há lutas em curso, sobretudo nas escolas secundárias. Lutas
que envolveram grande parte dessas instituições em São Paulo e que
também passaram para o estado do Paraná. São lutas pelo financiamento
público da escola e pela autonomia no ensino. Lutas longas, ocupações
que duram meses, conduzidas pelos garotos e garotas e apoiadas pelas
famílias. A essas lutas pelas escolas unem-se, com bastante frequência,
lutas de estilo argentino, parte dos movimentos feministas, juntos
contra a violência sexual e contra a violencia sobre a reprodução
(reivindicações: garantia de renda, trabalho doméstico remunerado etc.).


Em toda a América Latina, seguem, após a derrota dos governos
progressistas, sobretudo lutas nas escolas e lutas conduzidas pelas
mulheres. Trata-se de novas frentes sociais – centrais à luta de classe.
O conhecimento e a reprodução constituem, de fato, nós essenciais que o
capital deve dominar – formas diretas da emergência de um tecido
biopolítico sobre o qual se dá o confronto de classe. É ali que se abrem
novos espaços sociais de luta anticapitalista.


3. E depois a luta das populações negras, antes de tudo contra a
chacina dos inocentes, ou seja, a carnificina contínua dos jovens às
bordas das favelas.
Mas a questão racial não emerge somente em
relação ao genocídio da juventude negra – a questão racial se dá em
todas as partes da sociedade brasileira, constitui “a exceção” sobre a
qual se funda a “constituição material” do país. Também a questão da
pobreza é completamente ligada à dimensão racial-escravagista da
sociedade brasileira.


Não dá para cogitar que o Brasil entre plenamente na democracia sem
que a questão racial seja resolvida. As lutas dos negros e negras
constituem, portanto, a verdadeira sublevação da sociedade brasileira.
Discuti com jovens companheiros e velhos ativistas negros esta sua
conclusão: sem a direção de uma força militante negra, será impossível
construir qualquer forma de organização autônoma no Brasil, assim como
qualquer tipo de reviravolta política de libertação.


4. As principais forças que hoje se movem no terreno social em São Paulo,
particularmente o movimento contra a tarifa dos transportes urbanos e o
“movimento dos sem-teto”, conduzem a discussão sobre um terreno
instantaneamente político. Esses movimentos, protagonistas das lutas de
2013-2014, o primeiro por ter iniciado, o segundo por ter somado a força
de dezenas de milhares de famílias “sem-teto”, são também os que têm
uma consistência numérica (quadros de organização) e um respaldo
importante da massa.


São forças que produzem programa político na metrópole e que, de uma
nova forma, constituem contrapoderes sociais no âmbito metropolitano. Na
discussão com esses companheiros, o tema do “comum” é central,
tornando-se imediatamente evidente – assim como é – pelas lutas contra
as tarifas do transporte e também pela moradia. O “comum” pode ser
traduzido – dizem esses companheiros – em objetivos imediatamente
viáveis. Além disso, o debate destacou a importância da “greve social”
como forma de luta que pode unificar as forças que se agitam no contexto
metropolitano. Resta o fato de que as grandes manifestações de massa (e
pacíficas) são ainda consideradas uma arma fundamental.


5. O que fazer? A conclusão de muitos desses companheiros de
movimento está baseada no fato de que o PT tornou-se uma “esquerda
branca”, pálida em relação à questão racial e mole ao confrontar
políticas neoliberais. O partido perdeu a relação com a sociedade e não
poderá mais ser uma locomotiva para o desenvolvimento político. Há,
então, que se encontrar forças políticas e construir uma nova
organização social e política partindo dos movimentos. A autonomia dos
movimentos é agora fundamental para começar uma nova temporada política.
E como? O ponto central – como foi visto – será conjugar o (projeto
do) comum como tema unificador das lutas. A “renda universal
incondicionada biopolítica” é, neste quadro, a trama sobre a qual podem
se desenvolver o discurso político e a mobilização de defesa da “bolsa
família” e até da gratuidade dos transportes metropolitanos. E, sempre
neste quadro, devem ser destacados outros três campos de luta: 1)
intervenção sobre escola e conhecimento; 2) sobre o trabalho de
reprodução (particularmente o feminino); 3) sobre a questão racial e a
pobreza. A primeira intervenção sobre escola e conhecimento é central na
atual fase de acumulação capitalista no território cognitivo. Não por
acaso a escola se tornou um dos pontos centrais de construção das novas
legitimidades neoliberais.


Por isso, as lutas em curso no território da escola são estratégicas e
nelas podem se construir novas vanguardas. Mas o discurso pode se
alargar e provavelmente é deste ponto de vista – este da crítica e da
intervenção sobre o conhecimento – que o tema da nova classe média
poderá ser enfrentado – porque é aqui, dentro desta composição social e
produtiva, que o conhecimento é, sobretudo, explorado.


A classe do trabalho intelectual e de serviços já constitui – também
no Brasil – a média social e é sobretudo daqui que se extrai a
mais-valia. Quanto às lutas sobre a reprodução, a iniciativa argentina
me parece ressoar também no Brasil como perspectiva para o movimento. No
que tange à questão racial e aos temas da pobreza, já nos pronunciamos.
Partindo de São Paulo, talvez se pudesse impor um movimento que combine
essas diversas, porém convergentes linhas de ação. Isso foi o que
aparentemente pude compreender ao interrogar os movimentos autônomos de
São Paulo.





* Filósofo marxista italiano, Antonio Negri esteve no
Brasil em outubro de 2016 a convite da Universidade de São Paulo
(USP). Este texto foi publicado originalmente pela Fundação Rosa Luxemburgo, que também é responsável por sua edição e tradução.

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