NO CENÁRIO APOCALÍPTICO
da crise, a única saída apresentada pelo governo, e constantemente
cobrada pelo ministro da fazenda Henrique Meirelles, é a efetivação do
Projeto de Emenda Constitucional 241, que congelaria os gastos do Estado por 20 anos.
E se eles estiverem errado? E se isso que nos apresentam como “o melhor
que temos para hoje” não for exatamente o melhor para todos? Fizemos a
pergunta ao presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Júlio Miragaya, e a resposta foi clara: “de jeito nenhum” esse seria o melhor que temos para hoje.



O economista Júlio Miragaya, presidente do Conselho Federal de Economia.
Miragaya apontou cálculos feitos pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e exemplos de práticas internacionais que provam
existirem outras saídas. E ainda explicou por que a PEC pode congelar
não apenas os gastos governamentais, mas também o salário mínimo
brasileiro.





THE INTERCEPT BRASIL: Há economistas dizendo que a “PEC é o melhor que temos para hoje”. O senhor concorda?


JÚLIO MIRAGAYA: Não, de jeito nenhum. Esse é um
raciocínio um pouco preso às amarras do mercado financeiro. Se for para
fazer uma discussão como essa, a gente tem que abrir a discussão.


Na nota do Cofecon
a gente coloca isso. Tem que fazer ajuste fiscal? Tem! Ninguém em sã
consciência diria o contrário. O conselho federal não é favorável ao
desequilíbrio fiscal eterno. Claro que não.


Quando a gente fala de orçamento público, há uma visão distorcida de
que o Estado se apropria do dinheiro do povo para ficar com ele. Não. O
Estado é mero intermediário. Quando o governo arrecada esse dinheiro,
ele o distribui. O papel do Estado é esse: arrecadei, agora vou
distribuir.


Parte distribui para a massa mais pobre, em abono salarial, que é o
“Bolsa Família”, essas coisas. Parte vai para a classe média, em
universidade pública, porque o ensino universitário superior vai para a
classe média, principalmente. Agora melhorou um pouco com as cotas, mas a classe média é a grande beneficiada. E parte vai para o topo da pirâmide quando o governo faz isenções fiscais, créditos subsidiados, juros da dívida pública.


Sabe que 85% da dívida pública
é apropriado por 0,3% dos investidores, três milésimos. Isso aí é
transferência direta para a turma do topo da pirâmide. Então é aí que
ele tem que mexer, não é lá embaixo. Ele tem que mexer é nessa renúncia
fiscal, nos gastos com juros da dívida pública.


Ele [Temer] coloca a situação em
que ou faz assim, a PEC 241, ou o país quebra, ou é o desastre, ou é o
caos. E a gente sabe que não é nada disso.
TIB: Alguns países possuem imposto de renda progressivo, cobrando mais dos mais ricos. Seria uma opção viável?


JM: Tem uma pesquisa do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] que fala do problema no imposto de renda do Brasil: o pequeno número de alíquotas que a gente tem. Nós trabalhamos com três alíquotas,
enquanto em outros países a média é de cinco até sete. Se você começa
com uma alíquota pequena, não precisa começar já com 15%. Começa com
alíquotas de 7 a 8%, e tem países que vão com alíquotas de até 50% ou, às vezes, mais, chegam a 55%.


E tem de aumentar o número de faixas [salariais]. Para que as faixas
menores não sejam tão baixas, porque o cara mal ganha dois salários
mínimos e já está pagando imposto de renda, o que é um absurdo. É abaixo
do salário mínimo Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], que está em R$ 3 mil. E fecha em R$4,8 mil, que é também um absurdo.


Um cara com um salário de R$ 5 mil e outro cara com o salário de R$
200 mil pagam os mesmos 27,5%. Isso não tem o menor cabimento. Você tem
que estender essas faixas, botar uma faixa de 15% para esse camarada com
R$ 5 mil e ir aumentando, 20 a 25%. E esse cara com R$ 200 mil paga 40 a
45%.


Não vou nem falar 50 a 55% como tem na Dinamarca,
porque aí tem uma revolução aqui no Brasil por conta dessa turma. Mas
que evidentemente teria que ter uma diferenciação… não pode parar em R$
4800.


Então, nessa pesquisa o Sérgio Gobetti
mostra isso. A própria tabela do imposto de renda deveria ser
profundamente modificada, para que efetivamente pudesse cobrar mais para
quem tem condições de pagar.


TIB: E a gente não tem imposto sobre lucros e dividendos no Brasil…


JM: Não tem. Somos um dos dois poucos países do
mundo que isentam integralmente. Tem alguns que tributam pouco, mas no
Brasil é integral, é isenção total. Só o Brasil e a Estônia fazem isso. O
IPEA tem um estudo sobre isso, que mostra que, com uma alíquota sobre
lucros e dividendos, o Estado arrecadaria R$43 bilhões.
Significa que tem um total de aproximadamente R$ 350 bilhões por ano
que são lucros e dividendos auferidos no país e que não são tributados,
vai direto para o bolso dessas pessoas.


TIB: Existem também outros impostos para as classes
mais ricas que nós não temos e que são adotados em larga escala
internacionalmente, não?


JM: A tributação sobre herança, que é pífia no Brasil. Varia de 4 a 8% e, em alguns países, chega a 30%. Imposto territorial rural que é tão pequeno,
mas tão pequeno, que a União falou assim: “Oh, fica com os municípios,
que é tão mixaria…” Não se tributa efetivamente a renda do capital
pessoa física. Então, por que o governo não coloca em questão isso?


Vamos fazer uma reforma no modelo tributário. Não uma reforma tributária, mexer no ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços],
nisso, naquilo… Pode fazer, também, os ajustes que têm de ser feitos,
mas o ideal é o modelo tributário. É um modelo que não tributa aqueles
que deveriam pagar mais.


Então, ele [Temer] coloca a situação em que ou faz assim, a PEC 241,
ou o país quebra, ou é o desastre, ou é o caos. E a gente sabe que não é
nada disso.


“Aqui é curioso, porque quem
reclama da tributação é quem não paga. São os mais ricos que estão
sempre reclamando. Eles já não pagam o pato.”
TIB: Então tem como mudar os impostos…


JM: O Estado tem uma máquina de tributação à
sociedade. Aqui, ainda por cima, tributa mal a sociedade. Porque tributa
muito mais o consumo e a renda do trabalho do que a renda do capital,
na contramão do resto do mundo, que tributa mais quem pode pagar mais, o
capital. Mas aqui é o contrário.


The Federation of Industries of the State of Sao Paulo (FIESP) protest with a giant duck against taxes with a giant duck with an inscription that reads "Enough of taking the blame" at the Esplanada dos Ministérios in Brasilia on March 29, 2016. AFP PHOTO/ANDRESSA ANHOLETE / AFP / Andressa Anholete        (Photo credit should read ANDRESSA ANHOLETE/AFP/Getty Images)
Protesto da FIESP em Brasília, contra impostos.
Foto: Andressa Anholete/AFP/Getty Images
Aliás,
aqui é curioso, porque quem reclama da tributação é quem não paga. São
os mais ricos que estão sempre reclamando. Eles já não pagam o pato. Mas
são quem está reclamando, sempre. Porque não só proporcionalmente pagam
menos, como o pouco que deveriam pagar ainda sonegam. Mas essa é uma
outra história. Mas é a verdade.
TIB: Mas por que essas coisas não são abordadas como solução para aumentar a arrecadação?


JM: Não à toa a PEC 241 fala em despesas não financeiras. Por quê? Porque não mexe, é imexível. Como dizia o [Antônio Rogério] Magri,
são imexíveis essas despesas financeiras, são quase que sagradas.
Então, pelo lado da despesa, o governo podia estar se movimentando em
outra direção. Não vai nessa direção porque o choque é muito forte, com
poderes econômicos muito fortes. Então vai no povão, coitado, que está
acostumado a pagar o pato.


E pelo lado da receita, aí tem essa história de que a carga tributária não permite. Não permite tributar mais o consumo, não permite tributar o trabalho, mas permite tributar a renda do capital.


TIB: Talvez esse seja o grande desafio, de explicar a economia e as possibilidades para a população….


JM: Sim, mas tem como fazer.


TIB: E por que as pessoas que são oposição à PEC no
Congresso não mostram essas alternativas de que falamos, abordando a
questão de forma técnica e econômica?


JM: Cá entre nós, o Congresso não é exatamente aquilo que representa bem a população mais pobre do país.


Essa discussão foi feita de forma muito afobada. Eles estavam só
esperando passar a eleição do primeiro turno e rapidamente resolveram a
questão sem discussão, sem um processo de debate na sociedade.


Acho que a população vai acordar quando começar a sentir os efeitos.
Quando os recursos para o Fies, que já estavam desacelerando com a Dilma
e estão desacelerando mais ainda, começarem a minguar. Quando os
recursos do “Minha Casa, Minha vida” desaparecerem, quando começar a não
mais ter abertura de vaga em universidade pública, quando a situação do
SUS piorar. Porque, a cada ano, mais ou menos em torno de 1,2 milhão de
pessoas entram para a clientela do SUS e essa população não vai ter
como ser atendida. Vai ser a própria vivência da população que vai
mostrar que essa decisão do governo, para a população, é catastrófica.


“Então o país pode voltar a crescer? Pode! Mas vai voltar a crescer concentrando renda, promovendo a exclusão social.
TIB: Então resolve o problema da economia às custas do que é melhor para a população…


JM: Pode até resolver o problema para a economia.
Alguém falou que não vai? Não. Pode resolver! Já resolvemos no passado
isso. O Brasil já voltou a crescer, no tempo da ditadura, crescíamos a
10% ao ano. O Delfim Neto falou: “Nós vamos primeiro crescer o bolo para
depois dividir”. Mas na hora de dividir, esqueceu.


O país pode voltar a crescer? Pode! Mas vai voltar a crescer
concentrando renda, promovendo a exclusão social. Tem espaço para
crescer, só que vai concentrar num modelo que já foi experimentado e que
não foi nada bom.


Então tem saídas para a PEC, sim. Vamos discutir os itens de despesa
do nosso orçamento, vamos discutir o nosso modelo tributário e vamos
encontrar uma saída que permita refazer o equilíbrio fiscal, mas sem
jogar o ônus nas costas dos mais pobres e que têm o menor poder de
defesa e de mobilização.


O governo está querendo fazer economia em cima da população mais pobre.
TIB: É curioso que nem se tenha chegado a considerar
essa hipótese de cobrar mais dos mais ricos. A primeira solução
apresentada passou longe dessas propostas, foi logo sobre cortar da
previdência…


JM: Quando a gente entra nessa discussão, primeiro
pega pela lógica da despesa. Porque é que tem de ficar limitado tão
somente à mudança na lei da previdência? O aumento da idade mínima,
igualar o coitado do agricultor, do trabalhador rural, para 65 anos
dizendo que “ah, na Alemanha também é assim, na Suécia…” Pelo amor de
deus! A expectativa de vida de lá é de quase 80 anos. A expectativa
média de vida do camponês no norte e nordeste é de 63 anos. Então a
grande maioria deles sequer vai se aposentar. A idade mínima deles é de
60 anos, até porque muitos deles começaram a trabalhar com 12, 14 anos.
Então a idade mínima para eles tem que ser 60, porque a vida deles não
vai muito além disso.


Colocar 65 anos é deixar definido que ninguém vai ter aposentadoria.
Tem se falado, inclusive, no benefício de prestação continuada, que é
uma situação pior do que a do trabalhador rural. Quem tem uma renda
familiar de até um quarto do salário mínimo, aquele que não consegue
sequer se aposentar, porque não consegue comprovar o tempo de serviço,
porque passou a vida inteira na informalidade. Pega esse benefício de 65
anos e quer elevar para 70 anos. Essa população que está aí na
periferia das metrópoles, essa turma não chega aos 70 anos de idade.


TIB: Não foi só o Temer que fez esses cortes para os mais pobres…


JM: Então, na verdade, a própria Dilma [Rousseff]
mexeu nas regras do seguro desemprego. Tornou mais restritivas as regras
de seguro-desemprego numa época em que o desemprego cresceu. Eu estou
fazendo a crítica não só ao governo atual, mas ao anterior também.


O próprio Nelson Barbosa adiou o pagamento do abono salarial para
aproximadamente 8 milhões de trabalhadores que têm até dois salários. E
adiou de um ano para o outro. Isso é um absurdo! O governo está querendo
fazer economia em cima da população mais pobre.


É como se fosse uma porta de entrada para possíveis alterações na lei de salário mínimo.
TIB: Recentemente, houve uma discussão sobre como a PEC, que fala de gastos governamentais, congelaria o salário mínimo, que teoricamente seria algo da seara particular. O senhor poderia explicar os efeitos da lei no mínimo?


JM: Especificamente o salário mínimo, ele corre um
risco grande. Porque a economia voltando a crescer, ele entra em
contradição com a PEC, que tenta limitar os gastos ao limite da inflação
passada.


O que está na PEC é que os gastos têm que ser limitados à inflação.
Feito o balanço geral, o governo está autorizado a, por exemplo, não
promover ou vetar a realização de concurso público, ou não autorizar
aumentos de reposições salariais.


E, ali nas entrelinhas, pode estar entendido o seguinte: se um dos
motivos para que isso [a limitação à inflação do ano anterior] possa não
estar acontecendo for o reajuste do salário mínimo, está implícito aí uma questão de que ele [Michel Temer] pode, sim, modificar a lei do salário mínimo.


Inclusive, está dito sobre aumentos reais. Significa o que? Que, se o
salário mínimo está vinculado a um gasto, e ele prevê um aumento real
naquele benefício concedido, isso pode não ser autorizado.



Trecho da PEC 241.
TIB: Como assim?


JM: Existe uma lei do salário mínimo.
Tá certo? Essa regra atual do salário mínimo entra em contradição com a
PEC. E ela pode ser modificada para que a PEC não perca a validade.



Trechos da lei do salário mínimo onde se explica como
serão calculados os reajustes. Leva-se em conta a inflação, calculada
no Índice Nacional de Preços ao Consumidor; e o crescimento ou queda da
economia, que se traduz no índice do produto interno bruto (PIB) do
país. Assim, os reajustes do salário mínimo proporcionam ganhos reais,
acima da inflação, indo de encontro com o modelo de cálculo da PEC 241.
Vamos supor que daqui a dois anos, ou ano que vem, o país cresça. Em
2019, teria que se pagar a inflação passada. Mas, ao mesmo tempo,
existem cálculos de gastos do governo que são vinculados ao valor do
salário mínimo.


A aposentadoria rural, por exemplo, é salário mínimo. O que esse
crescimento da economia, refletido no valor do mínimo, significaria para
o INSS? Eles diriam: “Olha, vai explodir essa conta porque, agora, além
da inflação eu vou dar mais 2% de aumento com base no salário mínimo,
porque é quanto a economia cresceu. E aí já extrapola o limite”.


Nesse caso, o que está dito é o seguinte: lá na frente, ele pode
determinar que o ajuste do salário mínimo vai ter tão somente o aumento
da inflação passada, sem aumento real. Isso para que não se contrarie o
espírito da 241, que é limitar a variação das despesas a efetivamente a
variação da inflação.


TIB: Mas vamos ter aumento real no salário mínimo, mesmo com a crise?


JM: Em 2018 não vai ter. Porque o cálculo do mínimo é baseado na inflação de 2017, mais o PIB de 2016. Como a previsão para este ano é de retração do PIB, então em 2018 não vai ter aumento real.


Mas, se em 2017 a economia crescer meio percentual, que seja, em 2019
o mínimo vai ter que levar em conta a inflação de 2018, mais o meio de
aumento real. [A última previsão até agora é de crescimento de 1,3% do
PIB em 2017, segundo o relatório Focus, feito pelo Banco Central]


E se em 2018 a economia crescer o tanto que o mercado especula [o último relatório do banco Itaú
estima um PIB de 4% para 2018], em 2020 o cálculo do salário mínimo vai
ser a inflação de 2019, mais o ganho real. E isso pode significar uma
contradição com a própria PEC, que prevê limitar os gastos à inflação.


É como se fosse uma porta de entrada para possíveis alterações na lei
de salário mínimo. Então a PEC passa a ter, sim, uma incidência no
salário mínimo, na medida em que ela prevê medidas excepcionais caso
haja alguma transgressão da norma geral, de que os gastos fiquem
limitados à variação da inflação. Em suma, o salário mínimo corre riscos.


TIB: Então, resumidamente, para a PEC funcionar o salário mínimo não pode ter ganhos reais. Se ele tiver, a conta não fecha.


JM: Exatamente. Dado que, no espírito da PEC, tudo
fique mais ou menos naquilo que foi a base 2016. Então tudo daqui pra
frente varia, no máximo, o que foi a variação da inflação. É como se
fosse a reposição da inflação nos próximos vinte anos.


Vamos raciocinar. Eu tenho que limitar à reação da inflação numa
determinada área que seja basicamente composta por salários. A área de
educação é bem típica, os gastos de educação são fundamentalmente
salários [com cálculo que tem base no mínimo]. Se eu entro com um
raciocínio de que vou repor apenas a inflação… A menos que a intenção do
governo seja de que, com inflação de 8%, vou dar 4% de aumento para os
professores. Porque, ou eu reponho a inflação, ou eu não reponho
integralmente o salário para direcionar recursos para a ampliação, por
exemplo, do parque escolar.


TIB: Então, o orçamento da educação não está protegido como dizem os órgãos do governo?


JM: Por exemplo, a política de abertura de novas
universidades no interior do Brasil vai para o espaço. E até a política
de educação básica em tempo integral… De onde vai vir o recurso? A conta
não fecha! De onde vai vir esse dinheiro?


Ou essas políticas não vêm, ou então a intenção do governo é não
pagar a reposição da inflação aos professores. Porque, ao limitar o
gasto naquela área ao que foi feito no ano anterior, não há espaço para
incremento que nao seja simplesmente repor a inflação passada. Então, ou
os salários ficam defasados, ou não se investe mais em Universidades,
em Centros Técnicos.


Aliás, o piso salarial nacional dos professores também foi para as
cucuias. Porque ele previa uma recuperação do valor do salário, aumentos
reais na remuneração dos professores que, a essa altura do campeonato,
já foi para o espaço.


(Esta entrevista foi editada para melhor compreensão do leitor.)