domingo, 23 de outubro de 2016

A república das Marcelas, o reino das princesas e o sonho das meninas

A república das Marcelas, o reino das princesas e o sonho das meninas - 23/10/2016 - Angela Alonso - Colunistas - Folha de S.Paulo









A república das Marcelas, o reino das princesas e o sonho das meninas







"Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de reis, nada menos." Esta
Marcela foi a paixão de juventude de Brás Cubas, o personagem-síntese
do Brasil. Mas o nome também evoca outra Marcela, contemporânea e em
tudo distinta da literária.





A de Machado de Assis era mulher livre, dona de seu nariz. Perigosa.
Tanto assim que o Cubas pai tratou de afastar o filho da moça. A Marcela
de carne e osso carrega menos risco e nenhuma ambiguidade. Compartilha
com a ficcional o enquadramento num certo ideal de mulher, regido pela
beleza. Mas aí se esgota o paralelo.





A primeira-dama reza por breviário mais simples e bem conhecido. Trafega
em zona ultrassegura, nada precisa prover ou provar. Tem as contas
pagas, as falas prontas, a vida decidida. Nem o nome do filho careceu
escolher: no menino se reproduziu o senhor seu pai.





Marcela não se exprime, comparece. No papel de compor a paisagem, talvez
visasse o estilo Jackie Kennedy, da simplicidade elegante. Mas acabou
em campo retrô, meio Barbie, meio Rapunzel, entre dois mundos, o da
boneca, boa moradia para ex-miss dedicada ao consumo, e o reino do faz
de conta, onde se encastela qual a mocinha do cabelão.





A senhora Temer pertence a uma linhagem, a das primeiras-damas
decorativas, afeitas ao serviço social –a caridade, a filantropia e
outras formas de generosidade talhadas para camuflar a desigualdade.





O que surpreende nela não é tanto a dedicação ao frívolo conjugada à
inocência sobre o país –nisso, sua versão municipal, dona Bia Doria, já
ocupa inconteste o pódio. O que espanta é que, sendo tão jovem, seja tão
tradicional. E que tome para si, no perfeito equilíbrio de orgulho e
timidez esperado das recatadas, o papel de submissa, de secundária.
Espanta que mulher de sua geração jogue o jogo de gênero de modo tão
apaziguado.





Excluído o zumbido dos que protestam à sua porta contra o marido, nada
parece perturbar seu prazer contido em habitar uma gaiola dourada.
Obviamente não espanta a todos. Um bom naco do país festeja o retorno
das coisas aos lugares de costume: os senhores no comando, as senhoras
em casa –ou no shopping.





Termos tido uma presidente inflou fantasia maior que a dos contos de
fada, a da igualdade de gênero, que se desmancha nos resultados
eleitorais. Em São Paulo, onde reinará dona Bia, elegeram-se 11
candidatas, 20% da vereança, embora as mulheres sejam 52% da população
municipal.





Dados que decerto pouco afligem a nova primeira-dama paulistana. Dela
pouco sobrou a dizer. Ela disse tudo em entrevista à Folha. Da cidade
nada sabe. Sua geografia ajunta o Minhocão à Etiópia e não separa a Vila
Nova Conceição da Park Avenue. Mas, afinal, quem vai gerir é o senhor
seu marido.





A questão ultrapassa pessoas. O estilo das duas primeiras-damas
exemplifica um modelo de comportamento feminino esperado. Recomendam às
meninas se distanciarem dos assuntos públicos em troca de um reinado
doméstico.





Mais perigosa que sua xará ficcional, a Marcela de verdade encarna um
ideal: o da princesa. É também o que orienta uma herdeira do reino
Abravanel. Como não falta à moça capital para pôr devaneio em prática,
tornou-se feliz proprietária de uma franquia da Escola de Princesas.





Segundo seu site, a escola visa meninas de 4 a 15 anos e promete
"resgatar a essência feminina que existe em seus corações". As páginas
são cor de rosa, com uma coroa em destaque. Na primeira, mini-Marcelas
loirinhas e sorridentes propagandeiam o que aprendem: etiqueta e moda,
casa e família, e todos os maneirismos das antigas sociedades
aristocráticas. Saberão entreter, decorar, vestir, andar, receber e
pensar como princesas.





E o que pensa uma princesa? O site
: "O passo mais importante na vida de uma mulher é sem dúvida nenhuma o
matrimônio. Nem mesmo a realização profissional supera as expectativas
do sonho de um bom casamento. Enfim, a ideia do 'felizes para sempre' é o
sonho de toda princesa".





A educação para o casamento avança com candura, como avançam pelo país
os profetas do reino de Deus e os arautos do Estado liberal. Aí se abre
amplo mercado para a herdeira de Silvio Santos. Se seguir a trilha dos
negócios paternos, sua franquia logo abastecerá o país com profusão de
princesinhas, prontas a seguirem em júbilo os passos de Marcela.





Neste universo, de circunferência cada vez mais dilatada, a
primeira-dama não destoa, reina. O lema da escola é o seu: "Todo sonho
de menina é tornar-se uma princesa". O sonho de toda menina devia ser se
tornar o que quiser.





A próxima presidente, se a tivermos, prestará grande serviço se
extinguir o cargo das senhoras Temer e Doria. O país não precisa de
primeiras-damas nem de princesinhas. Precisa de mulheres de nervo e
cérebro. As princesas podem ir morar lá no reino ao qual pertencem, o do
passado.



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