sábado, 15 de outubro de 2016

A economia em guerra com a sociedade — CartaCapital

A economia em guerra com a sociedade — CartaCapital

A economia em guerra com a sociedade


por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo 
 

O absolutismo financeiro encaminha o conflito civil global e orienta todas as suas polarizações
ascensão
dos investimentos transfronteiriços nas décadas recentes não configura a
primeira explosão significativa da globalização financeira. O estudo Financial Globalization: Retreat or reset,
do McKinsey Global Institute, publicado em 2013, confirma que a Segunda
Revolução Industrial coincide com uma nova era da mobilidade de
capitais, que se estendeu, aproximadamente, de 1860 a 1915, quando os
ativos de investimentos estrangeiros globais alcançaram 55% do
porcentual do Produto Interno Bruto de uma amostra significativa de
países.
A participação dos ativos estrangeiros
globais sofreu uma queda acentuada no período que compreende as duas
grandes guerras mundiais e a Grande Depressão,
voltando a atingir seu pico histórico apenas no início dos anos 1990.
Recentemente, tais ativos alcançaram 160% do PIB dos países da amostra.
Antes ou agora, a globalização jamais
cumpriu as promessas de dependências harmoniosas. A fantasia de capitais
abundantes transbordando das economias centrais paras as periféricas,
em busca de maior remuneração pelo seu emprego (em decorrência de uma
situação “inicial” de escassez), homogeneizando sociedades e taxas de
juro ao redor do globo, vive apenas nas mentes herméticas de alguns economistas.
O verdadeiro sentido da globalização é o
acirramento da concorrência entre empresas, trabalhadores e nações,
inserida em uma estrutura financeira global monetariamente
hierarquizada. A convulsão das sociedades ante a falência dos nexos
econômicos é o corolário das simbioses e contradições das relações
“inter-nacionais”, que elevaram exponencialmente a complexidade da
gestão das políticas econômicas nacionais. Os dados sobre concentração
de renda corroboram a polarização observada na população.
Conforme o Global Wealth Databook, publicado pelo Credit Suisse, a riqueza acumulada pelo 1% mais
abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à
riqueza dos 99% restantes. A Oxfam afirma que, em 2015, apenas 62
indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, a metade
mais afetada pela pobreza da humanidade.
A Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico afirma que, entre 1975 e 2012, perto de 47% do
crescimento total da renda antes de impostos nos Estados Unidos foi
para o 1% no topo. O Fundo Monetário Internacional aponta queda de 11%
na participação da população de renda média entre 1970 e 2014 nos
Estados Unidos, em razão do “baixo dinamismo do mercado de trabalho”. A
tendência de polarização é consistente para diferentes cortes de
definição de renda média.
Não é recente a inquietação com o
movimento do capitalismo impulsionado pelas contradições entre
sociedades com “espaços democráticos” nacionais e mercados globais.
Ainda em 1848, o velho Marx, ao observar o desenvolvimento “de um
intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações”,
sentenciou: “Assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os
poderes infernais que invocou”.
Em Guerres et Capital, Éric Alliez
e Maurizio Lazzarato afirmam: “O capitalismo e o liberalismo carregam
as guerras dentro de si como as nuvens carregam a tempestade. Se a
financeirização do fim do século XIX e início do século XX conduziu à
guerra total e à Revolução Russa, à crise de 1929 e às guerras civis
europeias, a financeirização contemporânea dirige à guerra civil global,
ordenando todas as suas polarizações... À era da desterritorialização
sem limites de Thatcher e Reagan sucedeu a reterritorialização racista,
nacionalista, sexista e xenófoba de Trump, que assumiu a liderança do novo fascismo”.
Ante o nervosismo da insegurança
econômica, a polarização política se eleva, fomentada pelo crescimento
da massa daqueles que tiveram suas condições de trabalho e vida
precarizadas na senda da arbitragem geográfica de salários, impostos e
juros pela finança globalizada.
A política e a mídia tornam-se o palco de
demagogos que capitalizam essas fontes de preocupação e raiva,
manejando com desembaraço a técnica das oposições binárias, método que
se esparrama nas modernas ações e interações entre os participantes das
redes sociais.
A rejeição ao outro e a reputação das causas do mal aos que não são iguais excitam o ódio
de classe, raça, religião e gênero pelos quatro cantos do globo,
impossibilitando a articulação do movimento de grupos sociais
heterogêneos em uma grande coalizão progressista, reduzindo a esperança
de reedição de um ambiente econômico onde decisões sejam permeadas por
instâncias democráticas.

O protofascismo de Trump não é um fenômeno isolado. O Brexit
foi marcado pelo assassinato da deputada britânica Jo Cox. Antes do
ataque, o assassino gritou: “Reino Unido primeiro”, lema da ultradireita
britânica.
Ao analisar a vitória nas eleições regionais do Alternativa para a Alemanha, partido de extrema-direita, a revista Der Spiegel
afirmou: “A estratégia de apresentar uma solução única e incontestável
deve ser reavaliada. Caso contrário, o mundo estará encarando uma era na
qual serão cada vez mais fortes aqueles que não oferecem qualquer
solução, os que só oferecem rejeição e medo”.
No Brasil, as heranças e sestros da
casa-grande aproveitam-se dos desconfortos da crise econômica deflagrada
pelos aloprados dos mercados financeiros em contubérnio com um governo
aturdido por suas próprias incoerências, para assaltar trabalhadores,
aposentados e o orçamento público. A limitação dos gastos com serviços
públicos cauciona o rentismo sem limites.
Destroçada pelas exigências da política
antidemocrática dos tecnocratas de turno, a economia entrega seu destino
às forças do empobrecimento conceitual e da apologética sem limites. O
esvaziamento se faz em nome da despolitização e da “limpeza ideológica”.
Políticos e oficiais do governo valem-se
de conceitos econômicos para limitar a disponibilidade de políticas que
pareçam viáveis para a comunidade. O socorro aos bancos aparece tão
inevitável quanto o desamparo aos idosos e trabalhadores.
Por rádio, televisão e jornal as pessoas são “informadas” de que precisam se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais e menos direitos e benefícios trabalhistas, ou encarar a destruição da economia – tudo em nome da ciência econômica.
Trabalhadores devem cumprir maiores
jornadas e por mais tempo em suas vidas. Os impostos e as tarifas
públicas serão maiores, mas os serviços públicos serão reduzidos. Já a
transferência de recursos públicos ao rentismo, seja pela compra de
ativos podres, seja pelo pagamento de juros exorbitantes, não está em
discussão, essa é determinada pelo mercado, deus ex machina.
O necrosamento do
tecido econômico e o esgarçamento do social empurram os acuados, pelo
discurso da inevitabilidade econômica, a abraçarem a conclusão de que “o
inferno são os outros”. Se os empregos foram tomados, o Estado onerado e
a paz ameaçada por aqueles de nacionalidade, religião, gênero, opção
sexual, raça ou ideologia diferentes, a solução passa pela sua exclusão
ou eliminação.
Ao explicar a banalidade do mal, Hannah Arendt
aponta que as maiores maldades do mundo podem ser perpetradas por
homens comuns, sem razões malignas ou intenções demoníacas, mas seres
humanos que abdicaram totalmente da característica que mais define o
homem como tal, a capacidade de pensar.
Para Arendt, a manifestação do ato de
pensar não é o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do
mal, de fazer juízos morais. Essa incapacidade de pensar permitiu que
muitos homens comuns cometessem atos cruéis numa escala monumental
jamais vista, como no nazismo. Sua esperança repousa no “pensar”, como
poder para as pessoas evitarem catástrofes nesses raros momentos de
dificuldade.

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