domingo, 18 de setembro de 2016

O argumento ontológico abdutivo de Dallagnol

Convicção sem prova vem de Harvard — Conversa Afiada



Convicção sem prova vem de Harvard

E mesmo assim Moro condenará rápido e sumariamente























O Conversa Afiada republica do Nassif excelente texto de Gilberto Miranda Junior:

O argumento ontológico abdutivo de Dallagnol
O termo “ontológico” atribuído ao
argumento sobre a existência de Deus foi cunhado por Kant, que entendia
ontologia como uma filosofia transcendental à priori, ou seja, aquela
que dispensa a experiência sensível ou empírica para definir o próprio
saber. Anselmo de Canterbury (santo católico que viveu entre 1033 a
1109) possui o argumento ontológico mais famoso, estudado e comentado ao
longo dos tempos. Anselmo parte da premissa (mesmo que não fique tão
evidente em seu texto original apresentado nos capítulos II e III de seu
“Proslogium”, escrito em 1078) de que a existência é superior a
inexistência. Desse ponto, segundo sua definição de Deus (como o SER
mais perfeito e superior do universo), conclui que Ele tem,
necessariamente (uma necessidade lógica), de existir. Uma lógica
impecável, obviamente: se seres existentes são superiores a seres
inexistentes, e se Deus é o ser superior a todos, logo ele
necessariamente tem de existir. Não aceitar essa conclusão é incorrer em
contradição.
Todo o problema desse tipo de argumento
centra-se no fato de se usar aquilo que se quer concluir como premissa.
Para que Deus seja visto como superior a todos os seres, é preciso já
admitir sua existência, para depois afirma-la como conclusão. Esse tipo
de argumento funciona como um jogo de cartas marcadas, onde se manipula
com uma marca a carta que precisa ser encontrada no final para se ganhar
o jogo. No limite, é um raciocínio capcioso, uma empulhação, uma
desonestidade intelectual. Isso não significa que Deus não exista.
Significa apenas que as razões dadas para sua existência, nesse caso,
não são suficientes.
Nota-se que em geral, todo raciocínio
de cunho religioso carrega essa distinção argumentativa. Primeiro
dispensa-se a necessidade de qualquer demonstração empírica do que se
quer demonstrar. Em seguida, munidos de uma premissa que já pressupõe a
conclusão a que se quer chegar, declara-se a conclusão como se o fato
dela não ter sido diretamente mencionada nas premissas, fosse algo novo e
necessariamente lógico. Podemos, ao ouvir, ficar com uma sensação
incômoda de que fomos enganados, mas se caso a conclusão for ao encontro
do que já cremos, essa sensação é logo abafada e passamos a reproduzir a
forma de pensar sem maiores problemas.
Pensadores como Descartes, Spinoza e
Leibniz fizeram variações do argumento ontológico, porém a estrutura do
raciocínio sempre foi a mesma. Descartes em suas Meditações Metafísicas
dedicou-se a esse tema e tentou provar a necessidade da existência de
Deus para que faça sentido a própria existência do mundo externo ao
nosso pensamento. Em resumo: se é possível imaginar um ser perfeito em
todos os sentidos e que, na perfeição, a existência é um atributo
lógico, então Deus, que é perfeito em todos os sentidos,
necessariamente, existe.
Talvez não pelo fato de ser membro da
Igreja Batista (embora esse fato possa ter influenciado), o promotor
Deltan Dallagnol usa do mesmo tipo de raciocínio para desenvolver a
acusação contra Lula. No entanto, olhando seu Currículo Lattes,
constatamos que o mesmo se especializou na Harvard Law School em um
curso chamado “The Best Explanation of Circumstantial Evidence”. Ou
seja, sua especialidade parece ser a de determinar a melhor explicação
possível para evidências circunstanciais. Ao lermos a peça acusatória
fica claro que, se usada sua expertise acadêmica naquilo que apresentou
na denúncia, podemos concluir que, para o promotor, a melhor explicação
para um conjunto de evidências circunstanciais será amealhar aquelas que
possam confirmar uma crença anterior na culpa de alguém. Isso é
problemático demais e equivale a usar um argumento ontológico para a
existência da culpa.
No ano em que cursou Harvard, Dallagnol
apresentou um projeto de pesquisa sobre “Melhor explicação da prova
indiciária”, com ênfase em provas indiretas e diretas através das
“lógicas que guiam o raciocínio probatório”. No curso que fez e no
projeto de pesquisa que apresentou há estudos sobre dedução, indução,
analogia e inferência para a melhor explicação (chamada IME, mas
conhecida também por abdução). No projeto ele conclui que “a prova,
inclusive a circunstancial, é melhor compreendida a partir de óculos
abdutivos, isto é, via argumentos guiados pela inferência para a melhor
explicação”. Mas a questão que se abre é até que ponto a compreensão de
uma prova circunstancial lhe daria materialidade para uma condenação?
O pensamento abdutivo que foi
clarificado por Charles Peirce se constitui a essência de seu
pragmatismo. Hoje, compõe um dos três tipos de raciocínio lógico para o
estabelecimento de hipóteses científicas junto com o raciocínio dedutivo
e o indutivo. No entanto seu uso tem elementos característicos.
Enquanto o pensamento dedutivo infere casos particulares a partir de um
todo conhecido e o pensamento indutivo infere um todo a partir da
generalização de casos particulares conhecidos, Peirce considera a
abdução como um juízo intuitivo que serve como primeiro estágio de toda
investigação científica. Ou seja, a abdução vai reunir elementos novos
que podem, hipoteticamente, ser a explicação para um fenômeno, de forma
que essa ligação possa ser submetida à indução ou dedução como forma de
especificação causal do fenômeno. Cientificamente, no entanto, todo esse
aparato racional só será validado a partir da corroboração empírica das
hipóteses. O circunstancial deixa margem para dúvidas e, no caso de
dúvidas, a vantagem sempre é do réu, conforme reza os princípios do
direito.
Ao se dispensar a necessidade de
corroboração material ou empírica e transformar a hipótese abdutiva como
a essência do fenômeno, Dallagnol propõe que aceitemos algo como um
argumento ontológico abdutivo, por mais que isso encerre uma clara
contradição entre termos. Ele quer nos fazer crer que todo o esquema de
corrupção na Petrobrás, necessariamente, precisaria ter um chefe maior, e
se Lula era o presidente à época e pode ser visto como um elemento
comum entre os envolvidos com o esquema (por favor, esqueça aquele Power
Point), logo Lula, necessariamente, é o chefe maior do Petrolão.
Curiosamente, porém, Lula não é acusado
por esse suposto crime, embora tenha sido demonstrado por argumento
ontológico que o crime não existiria sem Lula. Porém, com base nele, o
nosso ilustre promotor chega à conclusão que o tríplex no Guarujá, sendo
da OAS e despertando em 2014 o interesse de compra de Lula, então se
trata de um bem doado ilicitamente fruto da corrupção. Não importa que
não haja prova material dessa afirmação. Importa é que ela é logicamente
necessária para se confirmar a metafísica que dá condições para que a
realidade atenda os desejos do procurador. O fato de não haver como
provar a propriedade do bem atribuída ao acusado, para o promotor, se
constitui em prova de que houve a intenção de escondê-la. Carl Sagan
estaria se revirando ao túmulo por ver deturpada sua famosa frase:
“ausência de evidências não significa evidência da ausência”.
Se o envolvimento de Lula no Petrolão
só é atribuível a partir de um argumento ontológico que insere a
conclusão nas premissas, e se a ligação de Lula com o tríplex, a partir
desse argumento base, é fruto de um raciocínio abdutivo, ainda estamos
diante de uma hipótese a ser corroborada materialmente. Jamais seria
considerado fato em qualquer pesquisa científica ou pensamento
epistemológico, mas no direito brasileiro é. Nossa análise, obviamente,
centra-se na argumentação do promotor e não na pertinência jurídica da
peça.
O grande problema de tudo o que foi
apresentado é que no âmbito jurídico é o Juiz quem decidirá qual tipo de
instrumento probatório é mais conveniente para ele, de acordo com suas
convicções. Não há, na Lei brasileira, hierarquia de provas. Distinto do
direito em outros países, a materialidade da prova não é,
necessariamente, superior a uma abdução, pois é o juiz quem decide que
prova acatar. Mesmo com a obrigatoriedade de justificar sua escolha, a
ausência de provas materiais sobre um fato não tira a capacidade
probatória de uma abdução, mesmo que ela seja baseada em um argumento
ontológico, como nesse caso.
Embora os promotores não tenham dito na
mesma sentença a frase que tem sido fruto de diversos memes na internet
(“Não tenho provas, mas tenho convicção”), ela reflete mesmo o que está
em jogo. A confissão de ausência de prova cabal e a convicção
inabalável na versão construída dos fatos foram ditas ao longo do
discurso da promotoria. A questão a ser respondida é se essa convicção
foi construída a partir do raciocínio abdutivo (inferência da melhor
explicação — IME) ou se o raciocínio abdutivo foi construído a partir de
uma convicção já existente. A resposta está no flagrante uso da falácia
embutida no argumento ontológico, onde, necessariamente, a conclusão
faz parte das premissas, gerando uma tautologia disfarçada.
Essa brecha para meras convicções
em nossas Leis nos deixa à mercê de elementos ideológicos e políticos
nos julgamentos, ou seja, à mercê da subjetividade de alguém cujas
motivações estão ocultas, embora no caso de Sérgio Moro, estejam mais do
que reveladas. A crescente politização do pensamento religioso não está
apenas em projetos como o Escola Sem Partido, mas está presente
maciçamente no Congresso e em nosso Judiciário. Laico, nosso estado
apenas é no papel. O próprio sistema que molda e sequestra nossas
instituições a seu favor tem como elemento substancial a ética
protestante, como nos denunciou Max Weber já há mais de 150 anos.
Portanto, podem esperar, apesar do
Power Point tosco e da mera convicção dos procuradores, que não só a
acusação contra Lula seja aceita, como sua condenação após rápido
julgamento. As cartas estão marcadas desde há muito, independente de sua
culpa, o que jamais deixará de ser uma possibilidade concreta.
Em tempo: Harvard é onde também o Juiz Moro bebeu saber - PHA

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