domingo, 19 de junho de 2016

Foi o patrão quem falou

 Foi o patrão quem falou



Foi o patrão quem falou

Luiz Gonzaga Belluzzo



O "ajuste econômico" até agora anunciado pelo governo Temer é
distinto do ensaiado em 2015, quando foram empregados cortes nas
despesas discricionárias com o propósito de converter o déficit fiscal
em superávit no curto prazo. A revisão da meta fiscal autorizou quase
dobrar o déficit primário em 2016 (para mais de R$ 170 bilhões),
sinalizando a ampliação dos gastos no ano em curso, ao invés do esperado
e alardeado corte. A nova métrica do "equilíbrio fiscal" busca impedir o
crescimento real do gasto primário de um ano para o outro, pois sua
ampliação será limitada pela inflação do ano anterior. A redução de sua
participação percentual no PIB não será obtida pelo corte absoluto no
curto prazo, mas pela perda da participação relativa decorrente de um
crescimento inferior ao da expansão do PIB ao longo dos anos.



Com o confinamento do gasto primário, nos próximos anos, todo
excedente de arrecadação produzido (superávit primário) será revertido
para o pagamento dos juros e, dependendo da evolução da receita, também
para o abatimento do principal da dívida, se o crescimento econômico
colaborar. O equilíbrio da relação entre dívida e PIB exige que a dívida
bruta do setor público cresça à mesma taxa que o PIB nominal. Para
evitar a majoração da razão fatal é preciso quitar a diferença entre o
crescimento do numerador (dívida) e denominador (PIB nominal). Isso
exige que a arrecadação do governo supere suas despesas em montante
proporcional ao serviço da dívida (superávit primário). Caso o setor
público consolidado apresente, por hipótese, um déficit nominal de 10%
do PIB, e o crescimento nominal da economia seja de 7%, seria necessário
um superávit primário de 3% para a manutenção da relação dívida/PIB.



A economia brasileira exibiu ao longo de dezesseis anos (1998 a 2013)
superávits primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do
setor público do patamar de 40% em 1998 para quase 58% do PIB em 2013,
acompanhado da elevação de 6% na carga fiscal, também medida em relação
ao PIB. Essa dinâmica perversa decorre dos efeitos da política monetária
no resultado fiscal: mesmo no ano da desgraça fiscal de 2016, mais de
90% do déficit nominal que engordou a dívida bruta no primeiro trimestre
foi devido ao pagamento de juros nominais, e não ao déficit primário.



A Grécia detém uma dívida equivalente a 170% do seu PIB, mas despende
5% do seu PIB em juros, enquanto o Brasil paga quase 10% do PIB em
juros com uma dívida inferior a 70% do PIB. A história recente da
evolução da dívida pública no Brasil demonstra o avesso da sabedoria
convencional. Dizem os sabichões que a taxa de juro é elevada por causa
do estoque da dívida, mas o caso brasileiro parece afirmar que a
dinâmica da dívida é perversa por causa da taxa de juro de agiota.



Tal trapalhada nas relações de determinação entre juro e dívida
decorre de outra: ignorar que no sistema monetário internacional
prevalece hierarquia entre as moedas (o dólar é mais "líquido" do que o
real). Assim, na era da globalização financeira, a descuidada abertura
da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas "internas" à
busca de condições atraentes para os capitais em livre movimento.



Em 1994 a forte valorização cambial reduziu a inflação mensal para a
casa dos 1%, porém ampliou o componente que correlaciona a formação da
taxa de juros com a expectativa de desvalorização do câmbio. Assim, as
taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites
exigidos pelos investidores para adquirir e manter em carteira um ativo
denominado em moeda fraca. Desde então, a volatilidade dos fluxos
financeiros é o fio desencapado que detona choques de juros na instância
fiscal e traumas de valorização/desvalorização do câmbio,
desorganizando as expectativas de longo prazo, leia­se, as decisões de
investimento. A aventura de 1994 terminou na desvalorização tumultuada
da "banda diagonal endógena" de 1999. Os emergentes que galgaram
posições hierarquicamente superiores na competição global apostaram no
controle de capitais e no planejamento estratégico para o
desenvolvimento nacional, ao invés de se ajoelharem diante da
desmoralizada crença na eficiência dos mercados financeiros.



Nesse mês foi publicado pelo FMI o artigo "Neoliberalism: Oversold?",
abordando especificamente os efeitos de duas políticas da agenda
neoliberal: a remoção das restrições do movimento de capitais
(liberalização das contas de capital); e a consolidação fiscal
("austeridade" para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida). O
estudo afirma que alguns influxos de capitais, como investimento direto
estrangeiros, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo, mas o
impacto de investimentos de portfólio e especialmente influxos de
aplicações especulativas de curto prazo não estimulam o crescimento e
muito menos garantem um financiamento estável do balanço de pagamentos.



A ocorrência desde 1980 de aproximadamente 150 episódios de
convulsões associadas a fluxos de capitais em mais de 50 mercados
emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard, Dani
Rodrik, de que esses "dificilmente são efeitos ou defeitos secundários
nos fluxos de capital internacional; eles são a história principal".
Quanto à austeridade, o estudo do FMI indica: a elevação de impostos ou
do corte de gastos para reduzir a dívida pode ter um custo muito maior
do que a mitigação do risco de crise prometido pela sua redução. É
preferível a eleição de políticas que permitam a redução do percentual
da dívida, diz o FMI, "organicamente pelo crescimento".



Segundo o estudo, as políticas de austeridade não só geram
substanciais custos ao bem­estar pelos canais da oferta, como deprimem a
demanda e o emprego. A noção de que a consolidação do orçamento pode
ser expansionista (isso é, aumenta o crescimento e o emprego), por
elevar a confiança do setor privado e o investimento, não se confirmou
na pratica. Episódios de consolidação fiscal foram seguidos por reduções
mais do que expansões no crescimento. Na média, a consolidação de 1% do
PIB eleva a taxa de desemprego em 0,6% no longo prazo, e o coeficiente
de Gini (concentração de renda) em 1,5% dentro de cinco anos ("The
Distributional Effects of Fiscal Consolidation").



O estudo conclui que os benefícios das políticas da agenda neoliberal
aparentemente foram um pouco exagerados. O FMI, que supervisiona o
sistema monetário internacional, tem estado na dianteira dessa
reconsideração. Já os, digamos, envelhecidos neoliberais do Brasil
teimam em não ouvir as novas do velho patrão.



Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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