domingo, 19 de junho de 2016

Enxugadores de gelo



Enxugadores de gelo

 POR LUIZ GONZAGA BELLUZZO E GABRIEL GALÍPOLO







NEOLIBERALISMO Eles ignoram que as dívidas dos emergentes estão sempre sujeitas às exigências dos investidores
 
No último dia 10 fomos informados por um
amigo que um economista chamado Márcio Garcia dedicou todo seu espaço na
coluna do Valor para comentar o nosso artigo "Foi o patrão quem falou",
zeloso da condição que nos arvorou em formadores de opinião. Não
vamos levar a sério a sugestão de que distorcemos as palavras do FMI
para que soassem como críticas ao neoliberalismo. O título do estudo do
FMI é Neoliberalism: Oversold? O próprio Valor já havia publicado
matéria em 30 de maio com o título: "Desigualdade leva o FMI a rever
agenda neoliberal".

Outras críticas de Márcio Garcia
decorrem de interpretações distorcidas de nossos argumentos. Acusá-lo de
desonestidade intelectual não seria apenas rude, mas também um
equívoco, pois lhe faltam predicados para tanto.

Nossa análise vai no sentido de avaliar a trajetória da relação dívida/PIB.
Acreditamos, assim como o FMI, ser preferível a eleição de políticas
que permitam a redução do porcentual da dívida "organicamente pelo
crescimento" do que tentar sua reversão no curtíssimo prazo, por meio da
"elevação da carga tributária e cortes em gastos produtivos"
(outraexpressão do estudo do FMI).

Essa observação é ainda
mais pertinente para o caso de economias em recessão, como foi
demonstrado pela aritmética presente no artigo do próprio Márcio Garcia:
"No caso brasileiro atual, tomando as informações do relatório Focus do
Banco Central (juro Selic real de 7,1%, crescimento real do PIB de 3,7% e dívida bruta de 66,5% do PIB, em dezembro de 2015), o superávit primário necessário para estabilizar a razão dívida bruta/PIB em 2016 seria de, aproximadamente, 0,665 x (0,071 (0,037)) = 7,2% do PIB! Um esforço fiscal que, a esta altura, é completamente inviável".

E
evidente que recorremos a um exemplo, deliberadamente simplificado e
hipotético, para demonstrar o esforço fiscal necessário para estabilizar
a relação dívida/PIB em um cenário de juros
altos. A pretensão de Márcio Garcia de que o seu cálculo não sejatambém
umexemplo simplificado, ou que reflita a realidade dos números da
economia brasileira, não resiste a um acesso à página do Banco Central
na internet. Caro Garcia, nem toda a dívida bruta é incrementada pela
Selic.

De janeiro a dezembro de 2015, as despesas com
juros nominais alcançaram 501,8 bilhões de reais. Os juros atrelados à
Selic foram de 179,1 bilhões. Conforme o BC, a dívida bruta atingiu
3,927 trilhões de reais, 39,2% indexada à Selic, em dezembro de 2015.
Câmbio, índices de Preços (IGP-M, IGP-DI, IPCA), TJLP, TRe Pré-fixado
indexam os outros 60,8% da dívida. Portanto, osjuros reais que incidem
sobre a dívida bruta na "fórmula bem conhecida" de Márcio Garcia estão
equivocados.

Em 2014, a relação dívida/PIB
era de 57,2%. Em 2015, a dívida bruta cresceu quase 21%, saltando para
os indigita-dos 3,927 trilhões. O crescimento nominal do PIB
foi de 3,8%, alcançando o valor de 5,904 trilhões. A dívida deveria
estacionar em 3,377 trilhões para manter a mesma proporção em relação ao
PIB de 5,904 trilhões em 2015, ou seja, encolher 550bilhões, o equivalente a 9,3% do PIB ao final do período.

Para
ilustrarmos a inexequibilidade desse esforço: em 2015, o Orçamento
original destinou aos ministérios da Educação 103 bilhões de reais, da
Saúde 121 bilhões, do Desenvolvimento Social 75 bilhões, dos Transportes
19 bilhões. Somados ao déficit da Previdência, de 86 bilhões, os gastos
chegariam a 406 bilhões. Fossem os recursos destinados ao pagamento de
juros de 502 bilhões, ainda faltariam quase 100 bilhões para fechar a
conta.

Minha amiga nas divergências, Mônica de Bolle
disparou desde Washington: "O que muitos economistas sabem, mas nem
todos admitem, é que a situação dos déficits crescentes e da dívida que
não para de subi r não será revertida tão cedo. Há quem vislumbre
déficits primários ao menos até 2018 - o FMI, por exemplo. Diante da
salgada conta de juros que temos - perto de 8,5% do PIB ou mais - elevar os juros para combater a inflação
virou opção de alto grau de toxicidade... Trata-se não do "devagar,
porque estamos com pressa" de Meirelles, mas do "devagar, porque não há
saída" que nos apresenta o enrosco nacional.

Reduzir os
juros não é uma questão de voluntarismo, muito menos de espaço fiscal. O
fato de a Grécia deter uma dívida equivalente a 170% do seu PIB, mas despender 5% do seu PIB em juros, enquanto o Brasil paga quase 10% do PIB em juros com uma dívida inferior a 70% do PIB, como afirmado em nosso artigo anterior, não foi mencionado nos comentários de Márcio Garcia. Nem poderia.

O
ponto central e inalcançável aos leitores de manuais papai-mamãe são os
mistérios da moeda e da estrutura financeira global. Os estudos
recentes do FMI, do BIS e da OCDE revelam as assimetrias do sistema
internacional monetariamente hierarquizado, e comandado pelo poder do
dólar.

Na edição do Global Financial Stability de setembro
de 2015, o FMI trata dos riscos construídos pelo endividamento em moeda
estrangeira. As turbulências cambiais nos países de moeda não
conversível, com suas graves conseqüências fiscais e monetárias
domésticas, exibem a assimetria fundamental do sistema
monetário-financeiro global ancorado na função de reserva de valor do
dólar, um perigoso agente da "fuga para a liquidez".

Mesmo
em um ambiente internacional de taxas de juro negativas nos países
avançados, como registra o Global Financial Stability, a trajetória da
dívida pública e privada dos emergentes está submetida, em primeiríssima
instância, aos prêmios de risco exigidos pelos investidores para manter
suas carteiras carregadas com papéis denominados na moeda "emergente"
não conversível.

No artigo "Onde o Perigo Espreita", o
ex-economista-chefe do FMI Olivier Blanchard critica as hipóteses da
corrente principal a respeito dos fluxos de capitais: "Paradas súbitas,
episódios nos quais os fluxos de capitais secam e os investidores
procuram sair todos ao mesmo tempo, não podem ser ignoradas. Elas ainda
acontecem com grande regularidade nas economias emergentes. São
ensinadas (nas universidades americanas) como um fenômeno típico dessas
regiões. Um exemplo do caráter provinciano da macroeconomia lecionada
nos Estados Unidos, cujos programas de doutoramento podem especializar o
estudante em macroeconomia sem saber o que é taxa de câmbio e muito
menos uma economia emergente". •



Blanchard. Nos doutorados
dos EUA, o estudante especializa-se em macroeconomia sem saber o que é
taxa de câmbio e uma economia emergente



O ponto central, inalcançável para os leitores de manuais, são os mistérios da moeda e da estrutura financeira global

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