domingo, 3 de abril de 2016

O impeachment, a Globo e o golpe: uma análise jurídica do caso

O impeachment, a Globo e o golpe: uma análise jurídica do caso



O impeachment, a Globo e o golpe: uma análise jurídica do caso

  • Geraldo Prado
Em outubro de 2015, o Professor Juarez
Tavares e eu apresentamos parecer sobre o processo de impeachment da
Presidente da República e afirmamos que alguns dos processos de
impeachment de presidentes, na América Latina, nas duas últimas décadas,
foram empregados como substitutos dos golpes de estado aplicados no
Continente pelas Forças Armadas ao longo do século XX.




Sustentamos na ocasião - e segue sendo
nossa opinião - que verificadas determinadas variáveis, contata-se que o
processo de impeachment é desvirtuado e se converte em golpe
legislativo, algo que é possível acontecer, por exemplo, no contexto do
atual processo de impeachment a que está submetida a Presidente da
República, porque não há justa causa na acusação a ela da prática de
crime de responsabilidade.




Muitas das críticas endereçadas ao "não vai haver golpe!" passaram longe da análise proposta no parecer.



É compreensível. Por um lado, com
independência do julgamento que cada pessoa faz do governo (bom,
regular, sofrível, péssimo), sempre há "vestígios traumáticos" que
incorporamos por causa das experiências vividas ou simplesmente contadas
acerca das nossas ditaduras (1937-45 e 1964-85). Mexer no campo das
emoções é tocar em área sensível, algo que termina por remeter à atitude
de negação. "Nego a possibilidade de que impeachment seja golpe" porque
quero negar a possibilidade de voltar a viver em um regime de exceção.




Mas há contestações que se fundamentam no
argumento de que a "defesa" de que impeachment seja golpe descamba para
uma redução simplista da realidade constitucional brasileira. Estas
contestações estão baseadas na ideia de que o impedimento da Presidente
da República tem previsão constitucional e, portanto, é inconfundível
com manobras dirigidas à quebra da normalidade institucional.




O texto contesta este argumento.



Em primeiro lugar, a afirmação de que
processos de impeachment podem ensejar golpes legislativos não foi
gratuita, tampouco irresponsável.




A análise do caso, no parecer, obedeceu
aos rigores dos métodos comparativos em ciência política, na linha
proposta por alguns teóricos absolutamente distanciados da vida
brasileira, como o Professor Anibal Pérez Liñan, da Universidade de
Pittsburgh.




Segundo Pérez Liñan, a comparação é uma
estratégia analítica válida e necessária não apenas para fins
descritivos, mas também explicativos de determinados fenômenos (grupos
de casos), enquadrados em conjuntos específicos (tipologias).




A seleção destes casos considera:



a) um fenômeno empírico - a recorrência
de processos de impeachment de Presidentes da República na América
Latina (13), durante duas décadas (1985-2005), após a conclusão de
processos de transição de ditaduras militares para democracias;




b) a significativa ausência de processos de impeachment no período de quase um século, antes do marco fixado (1985);



c) a estabilidade constitucional das Forças Armadas pós transição;



d) uma precisa definição operacional e as
variantes.  Para efeito de definição operacional, ao contrário do que
se tem sustentado, a previsão constitucional de processos de impeachment
foi considerada no parecer.

Afinal, o impeachment torna-se uma "questão" do ponto de vista teórico
porque está previsto na Constituição! O fato de estar previsto na
Constituição é interpretado como "variável dependente", isto é, a
previsão constitucional do impeachment é um fator necessário quer para o
emprego correto do instituto, quer para o incorreto.




e) o que efetivamente define se há/houve
emprego correto ou incorreto do impeachment são as variáveis
independentes, isto é aquilo que, além de ser necessário para o
impeachment, em se verificando também é suficiente para caracterizar o
seu uso incorreto (indevido, inconstitucional, enfim, golpe).




Por certo, a maior dificuldade para todos
está em ter suficiente tranquilidade, no turbilhão da crise política,
para identificar e avaliar os elementos que estão dados e que apoiam ou
não a conclusão de que, no caso, impeachment é golpe. É a atitude de
tentar controlar a emoção e examinar os fatos com critérios que não são
simples e, eles próprios, os critérios, estão sob ataque dos
interessados no golpe, em especial as corporações midiáticas, Globo à
frente, dedicadas a desqualificar toda narrativa que invalide a tese da
normalidade do impeachment.




As variáveis independentes identificadas na pesquisa que resultou no parecer foram:



a) a alegação de uma má gestão a cargo do(a) Presidente;



b) a ausência de previsão constitucional de moção de censura/voto de confiança (típicos do parlamentarismo);



c) a manipulação de exemplos de má gestão
como "crimes de responsabilidade" para formalizar a acusação no
processo de impeachment. Justo porque o presidencialismo sujeita o
controle da má gestão ao "custo eleitoral" e não à "moção de censura" da
Câmara ou do Congresso, "má gestão", isoladamente, não pode ser
definida nem mesmo pela Constituição como crime de responsabilidade, sob
pena de violar regras-princípios constitucionais fundamentais.




d) a atuação de "terceiras partes"
interessadas em antecipar o fim do mandato presidencial, como, a título
de exemplo, Cintia Rodrigo e Dayse Mayer, em distintas obras e sob
diferentes enfoques, destacaram ser uma constante no exercício do poder
pelos meios de comunicação de massas.




Este é o resumo dos instrumentos de
análise desenvolvidos por cientistas sociais brasileiros e sobretudo
estrangeiros, que ao serem aplicados ao atual cenário inevitavelmente
conduzem à conclusão de que o processo de impeachment em curso é uma
tentativa de "golpe encoberto".




O pedido de impeachment recentemente
formulado pela OAB - de forma vergonhosa - escancara a pretensão de
flexibilizar o mandato presidencial de Dilma Rousseff. Ao alegar que
quer o impeachment pelo "conjunto da obra", a OAB desvincula-se por
completo dos critérios jurídicos de definição de crime de
responsabilidade e parte para a analogia com a moção de censura, que não
está prevista na Constituição.




As "pedaladas fiscais", como reconhecem
os especialistas em Finanças Públicas e Direito Tributário - dos
liberais aos conservadores - não configuram crime de responsabilidade.
Inadimplemento contratual não se confunde com operação de crédito. A
absoluta ausência de tipicidade político-jurídica implica em falta de
justa causa para o processo.




Insisto, porém, no que me parece
fundamental e decisivo para a formação do contexto: a atuação das
"terceiras partes", em particular dos meios de comunicação de massas que
no Brasil são verdadeiro monopólio.




Um processo de impeachment tão improvável
juridicamente apenas se torna possível pela manipulação intencional de
empresas de comunicação social que, desinteressadas de informar, atuam
firmemente no sentido de construir uma opinião pública que pressione as
instâncias jurídicas a tomarem como "crime de responsabilidade" o que
não é.




Os "noticiários" da Globonews (canal
fechado) e do Jornal Nacional (canal aberto), não têm o menor
compromisso com o contraditório. Aliás, não surpreende porque o
contraditório não faz parte da tradição de favorecimento ao
autoritarismo, confessada recentemente pela própria Rede Globo de
Televisão.




Relativamente aos temas candentes da vida
social brasileira - vide a questão da reforma agrária, a proteção dos
direitos sociais dos trabalhadores e as condições de vida digna,
incluindo-se a preocupação ecológica que controverte com a exploração
empresarial destrutiva de nosso meio ambiente - não há qualquer programa
da emissora que viabilize um debate sério entre ideias opostas, sem
intervenção opinativa de jornalistas da emissora, programa realizado,
por exemplo, com sindicalistas, membros do MST, ou quaisquer pessoas que
contrariem os valores do capital, e pessoas com ideias antagônicas. Os
simulacros de debate não arranham as questões mais sensíveis aos
brasileiros.




O post não pretende tocar na questão
vital deste monopólio, que no lugar de assegurar a liberdade de
expressão, em uma sociedade plural, elimina as condições para isso,
padronizando pensamentos e formas de agir e instituindo uma atitude de
não-reflexão propícia ao estímulo à violência como resposta aos
conflitos.




A questão aqui, para finalizar, reduz-se
ao reconhecimento de que os meios de comunicação de massas monopolizados
"capturam a verdade" e buscam dominar a narrativa política, a ponto de
convenceram muita gente de que as tais "pedaladas fiscais" são crimes de
responsabilidade e "mesmo que não sejam" a Presidente da República é
indesejável e deve ser deposta.




Esta captura da capacidade crítica da
população, por meio da repetição incessante de inverdades como verdades -
no parecer mencionamos "'critérios de verdade' em relação aos quais a
verdade se torna um problema" - encontra, todavia, resistência.




A primeira e mais impactante está na
capacidade de articulação da resistência nas redes sociais. A
manipulação dos critérios de verdade, com a rudimentar distinção entre
"manifestantes" e "cidadãos", simpatizantes de partidos e movimentos
sociais versus "pessoas de bem", a "incapacidade" matemática de calcular
públicos em manifestações já se transformaram em motivo de descrédito e
chacota, graças à capacidade de multiplicação da informação
proporcionada pelas redes sociais.




As empresas de comunicação de massas
tentam passar a ideia de que "impeachment não é golpe", mas o que hoje
mais se fala é que "a Globo apoiou a ditadura!"




No entanto, isso não é suficiente. Como
sublinha um dos autores referidos no parecer, Juan J. Linz (Professor em
Columbia e posteriormente Yale), em "um sistema político democrático a
Constituição ocupa um lugar único e a lealdade a ela é um componente
essencial na estabilidade das democracias", em particular quando
enfrentam "sérias crises".




Neste contexto, Linz, nascido na Alemanha
e obrigado ainda jovem ao exílio por causa do nazismo e do franquismo,
menciona que "uma atitude manipuladora na formulação e interpretação das
Constituições pode converter-se em uma debilidade das democracias".
Cita como exemplo, em 1996, alguns regimes presidenciais
latino-americanos.




Salienta Linz que "na democracia, a
população necessita da garantia que a mantém unida". E esta garantia é
proporcionada por determinados órgãos, como o Poder Judiciário,
orientados pela imparcialidade e independência.




No caso da divulgação ilícita de conversa
telefônica da Presidente da República, a Globo repetiu incessantemente
as gravações, seus jornalistas buscaram dramatizá-las e o intento,
evidente, era o de corroer ainda mais a base de apoio ao governo que se
pretende derrubar.




As pessoas reagiram. Muitos deixaram-se
capturar pelo drama encenado pelos comentaristas da emissora e sequer
perceberam que naquela oportunidade, diferentemente do que costuma
fazer, o canal não convidou algum especialista da área do direito. Não
permitiriam manchar a narrativa com a indesejável alegação da ilicitude
flagrante do ato.




Pois bem. Hoje, 31 de março (52 anos
depois do último golpe), o STF decidiu categoricamente, por seus dez
ministros, que a ação do juiz era ilegal, inconstitucional e
injustificável.




A decisão do STF neste caso não é apenas
mais uma decisão. A Globo, antes de cada repetição dramatizada das
ligações, enfatizava que a interceptação era legal, porque autorizada
por um juiz.




Não há aqui o benefício da dúvida. A
ilegalidade era flagrante até para um iniciante no curso de direito.
Quando o STF impõe o respeito à Constituição revela - mesmo sem dizer -
que houve ação de violação das regras da democracia.




Neste contexto, a violação propagada
pelos meios de comunicação enquadra-se na variável independente
mencionada acima e reforça a convicção de que estes meios querem e fazem
parte do golpe de estado encoberto.




Entendo que muitos não queiram e não
aceitem falar de golpe. No entanto, a única forma de impedir a violação à
democracia é estudar e entender o que está ocorrendo, por mais dolorosa
que seja a conclusão e ainda que não se concorde com uma vírgula das
opções políticas da Presidente da República e de seu governo.




Geraldo Prado é Professor Titular de Direito Processual Penal na UFRJ

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