sexta-feira, 25 de março de 2016

Um golpe e nada mais

Um golpe e nada mais - 25/03/2016 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo












Um golpe e nada mais






A crer no andar atual da carruagem, teremos um golpe de Estado
travestido de impeachment já no próximo mês. O vice-presidente
conspirador já discute abertamente a nova composição de seu gabinete de
"união nacional" com velhos candidatos a presidente sempre derrotados.
Um ar de alfazema de República Velha paira no ar.





O presidente da Câmara, homem ilibado que o procurador-geral da
República definiu singelamente como "delinquente", apressa-se em criar
uma comissão de impeachment com mais da metade de deputados indiciados a
fim de afastar uma presidenta acusada de "pedaladas fiscais" em um país
no qual o orçamento é uma mera carta de intenções assumida por todos.





Se valesse realmente este princípio, não sobrava de pé um representante
dos poderes executivos. O que se espera, na verdade, é que o impeachment
permita jogar na sombra o fato de termos descoberto que a democracia
brasileira é uma peça de ficção patrocinada por dinheiro de
empreiteiras. Pode-se dizer que um impeachment não é um golpe, mas uma
saída constitucional. No entanto, os argumentos elencados no pedido são
risíveis, seus executores são réus em processos de corrupção e a lógica
de expulsar um dos membros do consórcio governista para preservar os
demais é de uma evidência pueril. Uma regra básica da justiça é: quem
quer julgar precisa não ter participado dos mesmos atos que julga.





O atual Congresso, envolvido até o pescoço nos escândalos da Petrobras,
não tem legitimidade para julgar sequer síndico de prédio e é parte
interessada em sua própria sobrevivência. Por estas e outras, esse
impeachment elevado à condição de farsa e ópera bufa será a pá de cal na
combalida semi-democracia brasileira.





Alguns tentam vender a ideia de que um governo pós-impeachment seria
momento de grande catarse de reunificação nacional e retomada das rédeas
da economia.





Nada mais falso e os operadores do próximo Estado Oligárquico de Direito
sabem disto muito bem. Sustentado em uma polícia militar que agora
intervém até em reunião de sindicato para intimidar descontentes, por
uma lei antiterrorismo nova em folha e por um poder judiciário capaz de
destruir toda possibilidade dos cidadãos se defenderem do Estado quando
acusados, operando escutas de advogados, vazamento seletivo e
linchamento midiático, é certo que os novos operadores do poder se
preparam para anos de recrudescimento de uma nova fase de antagonismos
no Brasil em ritmo de bomba de gás lacrimogêneo e bala.





Uma fase na qual não teremos mais o sistema de acordos produzidos pela
Nova República, mas teremos, em troca, uma sociedade cindida em dois.





O Brasil nunca foi um país. Ele sempre foi uma fenda. Sequer uma
narrativa comum a respeito da ditadura militar fomos capazes de
produzir. De certa forma, a Nova República forneceu uma aparência de
conciliação que durou 20 anos. Hoje vemos qual foi seu preço: a criação
de uma democracia fundada na corrupção generalizada, na explosão
periódica de "mares de lama" (desde a CPI dos anões do orçamento) e na
paralisia de transformações estruturais.





Tudo o que conseguimos produzir até agora foi uma democracia corrompida.
A seguir este rumo, o que produziremos daqui para a frentes será, além
disso, um país em estado permanente de guerra civil.





Os defensores do impeachment, quando confrontados à inanidade de seus
argumentos, dizem que "alguma coisa precisa ser feita". Afinal, o lugar
vazio do poder é evidente e insuportável, logo, melhor tirar este
governo. De fato, a sequência impressionante de casos de corrupção nos
governos do PT, aliado à perda de sua base orgânica, eram um convite ao
fim.





Assim foi feito. Esses casos não foram inventados pela imprensa, mas
foram naturalizados pelo governo como modo normal de funcionamento. Ele
paga agora o preço de suas escolhas.





Neste contexto, outras saídas, no entanto, são possíveis. Por exemplo, a
melhor maneira de Dilma paralisar seu impeachment é convocando um
plebiscito para saber se a população quer que ela e este Congresso
Nacional (pois ele é parte orgânica de todo o problema) continuem. Fazer
um plebiscito apenas sobre a presidência seria jogar o país nas mãos de
um Congresso gangsterizado.





Em situações de crise, o poder instituinte deve ser convocado como única
condição possível para reabrir as possibilidades políticas. Seria a
melhor maneira de começar uma instauração democrática no país. Mas, a
olhar as pesquisas de intenção de voto para presidente, tudo o que a
oposição golpista teme atualmente é uma eleição, já que seus candidatos
estão simplesmente em queda livre. Daí a reinvenção do impeachment.



Nenhum comentário:

Postar um comentário