domingo, 20 de março de 2016

Talvez sem volta

Talvez sem volta - 20/03/2016 - Janio de Freitas - Colunistas - Folha de S.Paulo



Talvez sem volta







Se fosse preciso, para o combate à corrupção disseminada no Brasil,
aceitar nos Poderes algumas ilegalidades, prepotência e discriminações,
seria preferível a permanência tolerada da corrupção. Os regimes
autoritários são piores do que as ditaduras, ao manterem aparências
cínicas e falsos bons propósitos sociais e nacionais, que dificultam a
união de forças para destituí-los.





A corrupção é um crime, como é um crime o tráfico de drogas, como o
contrabando de armas é crime, como criminoso é –embora falte a coragem
de dizê-lo– o sistema carcerário permitido e mantido pelo Judiciário e
pelos Executivos estaduais. Mas ninguém apoiaria a adoção de um regime
autoritário para tentar a eliminação de qualquer desses crimes paralelos
à corrupção.





A única perspectiva que o Brasil tem de encontrar-se com um futuro
razoavelmente civilizado, mais organizado e mais justo, considerado
entre as nações respeitáveis do mundo, é entregar-se sem concessões à
consolidação das suas instituições democráticas como descritas, palavra
por palavra, pela Constituição. Talvez estejamos vivendo a oportunidade
final dessa perspectiva, tamanhas são a profundidade e a extensão mal
percebidas mas já atingidas pela atual crise.





Apesar desse risco, mais do que admiti-las ou apoiá-las, estão sendo até
louvadas ilegalidades, arbitrariedades e atos de abuso, inclusive em
meios de comunicação, crescentes em número e gravidade. Os excessos do
juiz Sergio Moro, apontados no sensato editorial "Protagonismo perigoso"
da Folha (18.mar), e os da Lava Jato devem-se, em grande parte, à
irresponsabilidade de uns e à má informação da maioria que incentivam
prepotência e ódio porque não podem pedir sangue e morte, que é o seu
desejo.





Moro e seus apoiadores alegam que as gravações clandestinas foram legais
porque cobertas por (sua) ordem judicial, válida até 11h12 da quinta
17. Dilma e Lula foram gravados às 13h32. Esta gravação sem cobertura
judicial foi jogada para culpa da telefônica. Mas quem a anexou como
legal a um inquérito foi a PF, em absoluta ilegalidade. E quem divulgou a
gravação feita sem cobertura judicial foi o juiz Sergio Moro, cerca de
16h20.





Na sua explicação que seguiu a divulgação, porém, Moro deixou a
evidência que desmonta seu alegado e inocentador desconhecimento daquele
"excedente" gravado. Ao pretender justificá-lo como informação aos
governados sobre "o que fazem os governantes" mesmo se "protegidos pelas
sombras", comprovou que sabia da gravação sem cobertura ilegal, de quem
estava nela e do seu teor. E tornou-a pública, contra a proibição
explícita da lei.





A ilegalidade foi ampliada com a divulgação, em meio às gravações, dos
telefones particulares e das conversas meramente pessoais, que Moro
ouviu/leu e, por lei, devia manter em reserva, como intimidades
protegidas pela Constituição. E jornais em que a publicação de
pornografia e obscenidades está liberada, para pasmo da memória de
Roberto Marinho, atacam a "falta de decoro" das conversas pessoais.





O STF decidiu desconectar as ações sobre contas externas de Eduardo
Cunha e de Cláudia Cruz: a dela foi entregue a Moro. No mensalão, em 38
julgados no STF só três tinham foro privilegiado. Os demais foram
considerados conexos. Há duas semanas, o STF manteve em seu âmbito, como
conexos, os processos do senador Delcídio e o do seu advogado. Por que a
decisão diferente para Cruz? A incoerência não pode impedir suposições
de influência da opinião pública, por se tratar de Cunha e sua mulher.





Ainda no Supremo, Gilmar Mendes, a meio da semana, interrompeu uma
votação para mais um dos seus costumeiros e irados discursos contra
Dilma, o governo, Lula e o PT. Seja qual for a sua capacidade de
isenção, se existe, Mendes fez uma definição pessoal que o
incompatibilizaria, em condições normais, para julgar as ações. Assim
era.





Muitos sustentam, como o advogado Ives Gandra, que "a gravação [a
ilegal] torna evidente que o intuito da nomeação [como ministro] foi
proteger Lula", o que justificaria o impeachment. Foi o mesmo intuito da
medida provisória de FHC que deu ao advogado-geral da União título de
ministro para proteger Mendes, com foro especial, contra ações judiciais
em primeira instância. Uns poucos exemplos já mostram a dimensão do que
se está arruinando no Brasil, talvez sem volta.



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