domingo, 13 de março de 2016

...E nós somos uma ficção

Sei que o Diabo não existe. Deus também não. E nós somos uma ficção




Sei que o Diabo não existe. Deus também não. E nós somos uma ficção


Leonardo Sakamoto




Sei que o Diabo não existe. Deus também não. Desconfio que nós mesmos sejamos uma peça bem malfeita de ficção.

Um
dos textos que mais gosto de recomendar a meus alunos é “A Igreja do
Diabo'', de Machado de Assis. Aliás, o mundo seria muito melhor se todos
lessem Machado na escola ao invés de passar o olho no resumo que
acharam na internet na manhã do dia da prova. Não é a primeira vez que o
recomendo, mas como tenho pensado muito na natureza humana, resolvi
trazer o texto aqui. Fiz a heresia de cortar alguns trechos para que ele
fosse publicável no blog, dado o seu tamanho.

Se você está acha
que este texto tem o objetivo de, sorrateiramente, fazer alguma
alegoria política para o momento atual, esqueça. Você pode não saber,
mas o mundo é muito maior do que o pobre dualismo para o qual muitos de
nós querem empurra-lo.

Conta um velho manuscrito beneditino que o
Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus
lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel
avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem
cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes
divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular.
Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio
eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.


Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura,
breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha
igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se
combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de
mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de
negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os
braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir
ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os
olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é
tempo (…)

Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras
máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia
gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária
(…)

Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como
elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia,
a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo
eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito
em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para
rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo
grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples
invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao
próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo.

Chegou
mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava
esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que
escrevia a uma das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo!
Não há próximo!''(…)

A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se;
não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a
traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um
dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis,
às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas,
nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.

Certos
glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano,
justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à
noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra
vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para
fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o
Diabo.(…)

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa
análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de
conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno.

Deus ouviu-o
com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não
triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e
disse-lhe:

— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão
têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.
Que queres tu? É a eterna contradição humana.



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