domingo, 20 de março de 2016

Defeitos técnicos da denúncia

Defeitos técnicos da denúncia oferecida em face do ex-presidente e outros – Por Afrânio Silva Jardim | Empório do Direito





Defeitos técnicos da denúncia oferecida em face do ex-presidente  e outros – Por Afrânio Silva Jardim






Por Afrânio Silva Jardim – 14/03/2016
Inicialmente, mais uma vez, esclareço
que não sou advogado, não sou e nunca fui filiado a qualquer partido
político, não tenho qualquer tipo de relação pessoal com os denunciados e
também não tenho qualquer interesse específico no deslinde da situação
jurídica de que vou tratar.
Manifesto-me sobre este tema apenas na
qualidade de professor de Direito Processual Penal há cerca de 36 anos,
com diversos títulos acadêmicos e autor de livros sobre a matéria. Aqui
me utilizo do importante direito à livre manifestação do pensamento. Por
outro lado, os autores da denúncia criticada, ao darem publicidade do
seu teor, antes mesmo da necessária decisão judicial, se sujeitam ao
exame crítico da cidadania e da comunidade acadêmica.
Como se sabe, dois são os principais
motivos que podem levar a um juízo de rejeição das denúncias ou queixas
no Direito Proc. Penal. Um destes motivos seria o descompasso entre o
que se narra na peça acusatória e a prova que lhe devia dar lastro. Vale
dizer, inexistir suporte probatório mínimo (que eu chamava de justa
causa) do que foi narrado na denúncia, tendo em vista o que consta do
inquérito, da investigação ou das chamadas peças de informação.

Outro motivo de rejeição da denúncia é a sua inépcia, ou seja, defeito
formal do texto que nela é contido. Por exemplo, o art.41 do Cod. Proc.
Penal exige que a peça acusatória inicial impute aos denunciados “um
fato criminoso com todas as suas circunstâncias …”. A acusação, para ser
viável, tem que imputar um crime determinado, descrito na denúncia de
forma clara e precisa, para que os réus possam exercer eficazmente o seu
direito constitucional de defesa.
A meu juízo, a célebre denúncia
elaborada por alguns promotores de justiça de São Paulo incide no
segundo defeito acima apontado. Vale dizer, faz imputações de condutas
que não encontram tipicidade na lei penal. Vamos tratar desta questão de
forma tópica e geral, tendo em vista a extensão e complexidade de
mencionada denúncia, bem como o escopo desta nossa breve reflexão.
Inicialmente, parece-me que a denúncia
apresenta uma estrutura não usual, que dificulta até mesmo o seu
entendimento e distinção do que é imputação e demais considerações de
ordem jurídica, valorações pessoais, transcrição de depoimentos,
acórdãos, etc. Na verdade, a mencionada denúncia mais parece com outras
peças processuais, ou seja, mais se assemelha a estranhas alegações
finais ou razões de algum recurso, pois cita doutrina, transcreve
decisões judiciais, sustenta teses não existentes em nosso direito,
resume depoimento de testemunhas e vítimas, justifica a valoração de
indícios, bem como apresenta fotos variadas … Vale dizer, as condutas
ditas criminosas não estão devidamente individualizadas, situadas no
tempo e lugar.
Por outro lado, os autores da denúncia
ora analisada desconsideraram as regras do Cod. Penal que cuidam do
concurso formal e do crime continuado, confundindo, ainda, meros atos
com condutas penalmente tipificadas. Por este motivo, na sua parte
dispositiva, atribui a alguns réus mais de 800 estelionatos em concurso
material. Será que teremos penas superiores a um milênio??? Mais
especificamente, ao acusado Vagner de Castro é atribuído 2364
estelionatos e mais 556 tentativas de estelionatos … Aqui, teríamos
penas de cerca de três milênios …
Assim, podemos constatar que as
imputações feitas nos três primeiros parágrafos de peça acusatória são
de difícil inteligência, até porque as fraudes mencionadas genericamente
não têm relação de causalidade com “a obtenção de vantagem indevida em
prejuízo alheio com a cobrança de taxa de eliminação e demissão”.
Parece-nos que muitas das condutas que
são rotuladas como estelionato não passam de ilícitos civis, embora
graves e com consequências danosas para muitas pessoas. Entendo que não
encontra tipicidade no art.171 do Cod. Penal a conduta de exigir de
promitentes compradores uma indevida taxa de eliminação ou demissão. A
cobrança de um valor econômico indevido não se enquadra na figura penal
do estelionato. Muitas outras condutas narradas na denúncia não passam
de ilícitos civis, resultantes de descumprimento de obrigações
contratuais.
Por outro lado, encontramos várias
acusações de participação em crime de outrem sem dizer e descrever
exatamente qual foi esta conduta. A ação do partícipe tem que ser dolosa
e ter relevância causal em termos do resultado. Tal relevante
deficiência se encontra, por exemplo, nos incisos IV, VI e VIII da
denúncia. Repita-se, a conduta do participe deve ser descrita e situada
no tempo e lugar.
Estranhamos também um tópico destinado à
narrativa de condutas de vítimas … Ademais, qual o significado do
tópico da denúncia que tem o seguinte título: “Estelionatos por
amostragem específicos no empreendimento”???
Também se apresenta no mínimo estranha a
acusação de falsidade ideológica feita ao ex-presidente Lula. Teria ele
declarado à receita federal a propriedade de um apartamento que não lhe
pertencia (p.50). Primeiramente, é necessário que este documento conste
dos autos. Em segundo lugar, a própria denúncia reconhece que o acusado
apenas declarou ser titular de uma cota que lhe daria direito à compra
de um apartamento, provavelmente o 141. O Instituto Lula é que teria se
referido a um determinado apartamento … Ademais, que vantagem teria o
denunciado em declarar dolosamente um bem à receita federal que não lhe
pertencia? Se houve prejuízo para o fisco, então a competência seria da
Justiça Federal.
A lavagem de dinheiro atribuída ao
ex-presidente é bizarra. Como disse em outra oportunidade, como lavagem
de dinheiro sem dinheiro? Na verdade, a denúncia atribui à empresa OAS a
conduta de reservar um determinado tríplex para o acusado Lula, nele
realizando obras que teriam sido vistas pela esposa e filho do
ex-presidente. A própria denúncia não afirma que o imóvel chegou a ser
vendido ou doado ao acusado. Se crime existisse, então teria sido
tentado.

Se o imóvel não entrou no patrimônio do acusado Lula, através de
escritura transcrita no RGI, ele não poderia declarar ser proprietário
do apartamento. É intuitivo. A denúncia não diz que o acusado Lula
recebeu de qualquer pessoa qualquer quantia, bem como não afirma o
motivo pelo qual a OAS “reservou um tríplex” para ele … A conduta do
acusado foi apenas de ir ver o imóvel, quem sabe para adquiri-lo
posteriormente. Não adquiriu, não importa o motivo. Aliás, só seria
crime se adquirisse com dinheiro produto de crime. Como está na
denúncia, parece que a tentativa de lavagem de dinheiro seria dos
responsáveis pela empresa OAS.
Ademais, não caracteriza crime de
lavagem de direito a conduta OMISSIVA que “deliberadamente desconsiderou
a origem do dinheiro empregado no condomínio Solaris do qual lhe
resultou um tríplex …” Resultou ??? Se bem entendi, o acusado Lula
deveria ter investigado com que dinheiro foi construído o prédio do
condomínio Solaris … Muito estranho isto, não?
Finalmente, não estão minimamente claras
as imputações feitas à acusada Marisa Lula da Silva e a seu filho Fábio
Lula da Silva. Veja-se a frágil e genérica imputação constante do item
LXXI da denúncia, onde Fábio é acusado de “promover esforços” para
ocultação da propriedade do imóvel 164-A, em benefício de seus pais. Que
esforços foram estes? Marisa apenas visitou o imóvel e tomou
conhecimento da reforma feita pela empresa proprietária !!!! Os
comentários do porteiro, corretor e vizinhos mencionados na denúncia não
transformam os visitantes de um imóvel em seus proprietários…
Enfim, embora não tenhamos nos
aprofundado na compreensão da extensa e complicada peça acusatória,
reconhecendo a grande complexidade dos fatos, não podemos deixar de
afirmar, na condição de professor de Direito Processual Penal, que a
denúncia sob censura é uma peça absolutamente imperfeita, com total
falta de técnica e que não atende aos requisitos mínimos exigidos pela
lei processual.

Nenhum comentário:

Postar um comentário