sábado, 13 de fevereiro de 2016

Perguntas que a imprensa precisa responder

Perguntas que a imprensa precisa responder | Observatório da Imprensa 

 




SAúDE PúBLICA > Zika vírus

Perguntas que a imprensa precisa responder

Por Roxana Tabakman em 06/02/2016 na edição 888
As etapas iniciais de um surto
epidêmico oferecem excelentes oportunidades aos jornalistas encarregados
da cobertura de saúde pública. Há muitos cientistas que aceitam deixar
entrar as câmaras em ambientes habitualmente vedados, o Ministério de
Saúde oferece informação o tempo todo, as famílias afetadas procuram a
imprensa porque sabem da importância dela para melhorar a situação, há
muito interesse do público e os índices de leitura/visualização dos
produtos informativos alcançam níveis invejáveis. O nosso trabalho chama
a atenção, dá cliques, gera conversa. Em resumo, quando o contexto
geral é de intranquilidade, o jornalista pode dormir tranquilo porque
não falta trabalho.


A vida boa, porém, está prestes a se acabar. O período em que não é
preciso nem parar para pensar como convencer os editores a publicar
matérias de saúde produzidas aqui e não simplesmente traduzidas , está
com os dias contados. Agora que o vírus zika já foi registrado em 32
países (e logo serão mais) e que a emergência internacional da
microcefalia é oficial, chegou a nossa hora: a concorrência com a
imprensa internacional é para valer. A mídia brasileira deve sair às
pressas da zona de conforto, os jornalistas têm que se preparar para o
que vem na frente. Falando direto. Chegou o momento de desviar a atenção
dos porta-vozes oficiais e das telas de televisão, e se perguntar: O
que será que não está chegando de maneira automática no meu email? O que
está acontecendo de importante e que deve ser investigado?


Novas perguntas ou novas respostas


Não dá para continuar repetindo o tempo todo apenas a recomendação de
por areia no vaso da sacada. Isso todo mundo já sabe, faça ou não faça.
Ou publicar números em constante aumento, seja de vírus, pessoas ou
países. O público e a imprensa vão exigir novidades, novas perguntas ou
novas respostas.


A lista de pautas possíveis já é significativa. Vai desde cientistas
infectando mosquitos para proteger a saúde humana, testando o zika em
mini cérebros criados no laboratório, fabricando vacinas Frankenstein
com pedaços dos vírus do dengue e a febre amarela, preparando radiação
não letal ou avaliando repelentes de última geração que utilizam os
últimos avanços das nanotecnologias. Há também fatos bem distantes
destas disciplinas. Nos bancos de sangue do mundo nosso líquido vital
está virando sangue de segunda categoria e na suspeita de possível
transmissão sexual, nas viagens pelo exterior, amantes brasileiros só
serão aceitos com dupla camisinha.


Mas no final, a pergunta que todo mundo quer saber é a seguinte: Um
mosquito é mais forte que um país inteiro? Vamos ou não ganhar essa
guerra? “O Aedes aegypti é o problema de saúde pública mais grave do século e você é responsável por termos uma epidemia”,
é a mensagem oficial difundida massivamente. A criação na população da
consciência de que estamos diante de um problema de gravidade
extraordinária facilita a necessária mobilização. E aos saudosos do
militarismo, a mobilização de 220 mil militares e brigadas conformadas
por 300.000 agentes públicos lhes dá tranquilidade. Mas será que é mesmo
uma guerra? Será que o mosquito é o principal obstáculo para termos
saúde? Será que a estratégia de acabar com os criadouros é 100% 
efetiva? Será que podemos todos juntos erradicar o mosquito listrado? Ou
tudo se trata, apenas, de uma utopia compartilhada?


A luta corpo a corpo e casa a casa é necessária porém, insistem os
especialistas, é insuficiente. Se os responsáveis pelo marketing estão
oferecendo uma resposta rápida e simples à sociedade é porque acham que
isso é o que o povo está precisando.É também a hora da imprensa dizer
não. Não basta ser rápida. Tem que ser também uma resposta eficiente,
possível e sustentável a longo prazo. E na hora que o jornalista mudar 
sua forma de ver o problema, surgirão centenas de novas perguntas,
dúvidas e pautas.


Para resolver o problema de vez são necessárias medidas urbanísticas e
sociais que estão ficando fora do foco. A nossa angústia atual é em
grande parte consequência do crescimento desordenado das cidades e
ausência do saneamento básico. O que nos diz esse fato sobre nosso
futuro?


Em segundo lugar, vale a pena aprofundar mais nas alternativas
biotecnológicas que começam a ser testadas. Algumas nascem envoltas em
polêmicas e, a depender do tratamento jornalístico, o repórter pode ser
de muita ajuda, ouprovocar muito dano.


No Brasil está sendo desenvolvido, por exemplo, o projeto Wolbachia,
que consiste em inocular no Aedes aegypti uma bactéria com o objetivo de
torná-lo incapaz de transmitir os vírus (da dengue, zika e
chikungunya). O micróbio é, na sequência, transmitido da fêmea para os
ovos, e no cenário final uma população de mosquitos incapazes de fazer o
mal vai substituir os atuais, que ninguém quer por perto. O desfecho do
tipo  “viveram felizes para sempre” seria obtido sem matar ninguém, nem
sequer um mosquito. Será que uma estratégia assim é verdadeiramente
eficiente e compatível com a saúde do meio ambiente? É uma pergunta que
muitos se fazem e que vale a pena responder.


Outra tática de alta tecnologia, com pesquisas já bem avançadas, é a
do mosquito transgênico que esteriliza a fêmea e, no longo prazo,
permite sonhar em acabar com a espécie (o que não é de lamentar porque o
Aedes aegypti é invasor aqui na América Latina, é preciso dizer). O
projeto todo parece roteiro de filme. Começa no laboratório de
engenharia genética e, na cena final, a população de mosquitos
sobreviventes não é suficiente para transmitir o vírus. Outro caminho
paralelo que os cientistas avaliam hoje é alterar o DNA dos mosquitos
para que sejam incapazes de levar o vírus zika na barriga, uma
característica que logo seria transmitida aos seus descendentes
(processo tecnicamente conhecido como gene drive). Hoje ainda há muita
oposição a liberar animais transgênicos no ambiente natural. Será que o
medo mundial da microcefalia muda a percepção pública sobre a
necessidade de contar com ajuda dos organismos modificados
geneticamente? Tal vez. Isso é desejável? Achamos que sim, mas cada
jornalista tem que produzir notícias capazes de levar o público a
desenvolver suas  próprias conclusões.


O foco destas estratégias está no bandido de patas listadas, que os
cientistas querem, seja aniquilar, seja converter em Aedes do bem. No
final da estrada, um cenário maravilhoso de um mundo sem mosquitos
malvados. Na teoria é possível, mas o Brasil precisa de repórteres bem
formados capazes de ouvir estas maravilhas com suficiente ceticismo
profissional para checar as informações recebidas.  A história contada
apenas pelos protagonistas, com autoridade e interesses próprios, em
jargão preciso e incompreensível, e sem possibilidade de questionamento,
constituiria um ato de fé. Depois de todo anúncio ribombante o repórter
precisa ir atrás, saber o que opinam outros cientistas trabalhando na
mesma área, se avaliam a metodologia, se o investimento faz sentido.
Também deve evitar a crítica infundada baseada nas distopias literárias
que começam num laboratório de paredes brilhantes e acaba já sabemos
como. A mídia brasileira pode dar um show de bola se conseguir difundir o
que se faz no país sem “comprar” as informações técnicas de olhos
fechados nem fugir delas como se fosse um pecado. A ciência demanda
evidências, o jornalismo também.


O diagnóstico da síndrome da microcefalia e o teste do vírus em
fluidos humanos é um outro assunto que vai gerar muitas notícias nos
próximos meses. Também aqui é essencial que se deixe de repetir a
importância de um anúncio apenas porque os próprios autores disseram que
ele é genial. É bom saber que um método de identificação da doença não é
maravilhoso unicamente por ser rápido e barato. Tem que ser avaliado
pela sensibilidade (capacidade de identificar a afecção), especificidade
(capacidade de identificar quem não tem a afecção) e valor preditivo
(proporção dos exames positivos de pessoas que realmente ficaram
doentes), isso é indispensável para saber o que significam os casos
confirmados ou descartados. Não ouvi jornalistas fazendo perguntas com
essa profundidade, a grande maioria deles apenas está transcrevendo
números oficiais.


O ritmo da ciência é lento. A mídia vai ser chamada muitas vezes a
noticiar pequenos avanços na busca de um soro ou uma vacina contra
dengue, zika, chickungunya entre as muitas fórmulas que estão sendo
pesquisadas. A urgência e publicidade podem alavancar o dinheiro
necessário e organizar o sistema científico para que o processo não
demore mais do que o necessário. Os laboratórios e as instituições
precisam da imprensa para que estas pesquisas continuem sendo uma
prioridade do Estado. Mas a mídia não pode cometer o erro, como fez no
tristemente célebre caso da fosfoetanolamina- de exigir o atropelo de
fases clínicas. O método científico exige esperas longas porém
extremamente importantes.


Falsas polêmicas.


As discrepâncias entre os cientistas são reais e positivas, assim é
como avança o conhecimento. Mas outro ponto importantíssimo é refletir
sobre o que chega ao público como polêmica sem base na realidade. Os
ecologistas não gostam de mexer no ambiente natural? Vamos então
perguntar para eles sobre o mosquito transgênico. Pedir a avaliação dos
contrários, ou seja, se jornalista tem a certeza que as fontes oferecem
distintos pontos de vista e não simplesmente editam a informação à luz
da suas paixões pessoais. Nos tempos de epidemia é a hora de fugir de
militantes desinformados. Caso contrário, um repórter pode acabar
propondo encher o Parque do Ibirapuera de anfíbios que comam os
mosquitos ou recomendar velas de citronela, ou estratégias similares na
sua falta de eficácia contra o Aedes. A militância bem informada pode,
porém, ser de grande ajuda para mostrar como os agravos ambientais
impactam na saúde das populações humanas.


A correta avaliação das fontes pode parecer uma recomendação
desnecessária, mas a disseminação dos erros é tão marcante hoje em dia
que é difícil saber o que é verdade ou não. Será que o leitor,
provavelmente bem informado, sabe responder sem erros quais destes
métodos são eficientes para protegê-lo de picadas do mosquito? Spray
doméstico- Raquete elétrica-Repelentes a base de Icaridina- Repelentes a
base de DEET- Repelentes eletrônicos- Lavar o chão com citronela-
Plantar crotalaria- Velas repelentes- Limão com cravo- Areia nos pratos-
Sal grosso – Borra de café- Carros com fumacê- (lista incompleta devida
à extraordinária inocência e criatividade do brasileiro). A cobertura
de assuntos que impactam na saúde não significa dar as costas às fontes
não oficiais, mas é preciso avaliá-las com rigor porque o dano ficará
para as próximas gerações.


Controle do mosquito ou erradicação?


A gente acredita que estamos em um período de tolerância zero, mas
não é bem assim. O país abandonou oficialmente a meta de erradicar o
Aedes aegypti no mês de julho de 2001. O propósito é controlá-lo. Mas
isso não significa que não existam especialistas que apontem a
erradicação como único caminho. É o Fla-Flu da Copa Aedes aegypti.


Se o jornalista procura olhares de fora do mainstream, pode encontrar
aqueles que acreditam que é de nossa responsabilidade humana
preocupar-nos que o mosquito não esteja contaminado com o vírus. São
especialistas em modelos matemáticos que insistem que deveria se
proteger mais os mosquitos do contato com os infectados do que se faz
hoje. Em outras palavras, eles põem o foco no isolamento dos que já
estão infectados. A lógica é fácil de entender. Os vírus se reproduzem
mais rapidamente nos seres humanos do que no mosquito. O inseto é uma
espécie de “disque-virus’ que faz entrega casa por casa, mas o animal
que o transporta a grandes distâncias é o humano. A fonte do vírus não é
o mosquito, é o homem. Essa mudança de perspectivas é interessante, mas
pode ter consequências. A história da medicina brasileira tem uma frase
célebre de Oswaldo Cruz: “dêem-me liberdade que eu erradico a febre
amarela”. Naquela época (1904) , o mosquito foi mesmo erradicado. A
estratégia incluía, entre outras medidas, isolamento rigoroso do doente
em ambiente protegido por telas metálicas.


Cingapura contempla multas de alto valor e até cadeia para quem tiver
criadouros com larvas de Aedes em casa. Hoje, na Bahia, usuários
anônimos fotografam e informam aos órgãos municipais os locais com
possíveis criadouros de mosquito através do aplicativo Caça Mosquito
(para o sistema Android). A sociedade ainda deve discutir – e a mídia
tem um papel crucial neste debate – sobre o que deve ser feito ou não
para resolver a difícil convivência das pessoas com os mosquitos. Mas
para fazer isso, precisamos dar a conhecer a real efetividade de cada
uma das estratégias que podem ser executadas. Os números existem, estão
nos discos duros dos computadores dos cientistas. É só saber perguntar, e
ter a coragem de divulgar.


Quantos casos são?


Os repórteres vão continuar buscando respostas a essa pergunta por
muito tempo e com muita pressão dos editores que procuram manchetes
impactantes. Os cientistas também. E os dois sabem que o campo dos
números está cheio de armadilhas. Pernambuco tem muitos casos de
microcefalia. Será simplesmente uma super notificação?. Os casos mais
graves estão no Ceará. Há alguma outra causa contaminando os dados?


O repórter pode fazer uma mudança de foco indo na contramão:
perguntar quantos casos de microcefalia se devem mesmo ao Zika e colocar
seu interesse noutras possíveis causas da enfermidade. Se não for o
Zika, qual pode ser uma outra causa? Há sem dúvida outras questões a
serem estudadas, desde redes de atenção básica ineficientes a causas
ambientais desconhecidas. Toda substância química ou radiação que
interfira em mecanismos essenciais do desenvolvimento do feto pode levar
a malformações, a lista de contaminantes parece infinita e
provavelmente ainda é incompleta.


Procurar o lado oculto da informação não significa porém alimentar as
teorias conspiratórias. Sempre onde a grande maioria enxerga um
problema, outros vêem um negócio oculto. O maldito capitalismo lucrando
com as nossas doenças é um clássico dos boatos de internet. A afirmação
de que o vírus Zika foi criado pelos Rockefeller está sendo amplamente
difundida, ao ponto que o site e-farsas.com, que investiga
rumores da web, decidiu esclarecer o assunto. (É mentira, lógico, mas de
fato o nome do milionário norte-americano   e a saúde pública
brasileira estão realmente interligados. Poucos sabem que entre os anos
1923-1940 o Departamento Nacional de Saúde Pública do Brasil passou à
Fundação Rockefeller a responsabilidade exclusiva pela eliminação do
Aedes aegypti). As teorias conspiratórias abarcam todas as bandeiras.
Antes que a OMS declarasse a emergência, muitos se perguntavam,
(geralmente em inglês). What must be heavy lobbing from Brazil not to declare emergency?.(Quão
forte deve ser o lobby do Brasil para que não se declare a emergência?)
Mas a imprensa que tem a responsabilidade de informar sem censurar
verdades, deve tomar cuidados extremos para  não cair na armadilha de
misturar fatos reais não relacionados.


Com as lições aprendidas com a gripe suína, a prestigiosa plataforma de informação científica scidev.net quis oferecer aos jornalistas de países com poucos recursos e grandes desafios, as suas recomendações.
“Para informar com responsabilidade sobre o brote de uma doença, não é
apenas necessário dar sentido aos primeiros informes. Também deve ser
feito um acompanhamento exaustivo da evolução da doença  a longo
prazo…Há necessidade de voltar às fontes para ver se elas mudaram de
opinião e levar isto ao conhecimento do público.”


O Zika pode servir para um bom aprendizado no jornalismo científico. 
Saibam apenas que a contagem regressiva da dengue já começou. Os
especialistas aguardam uma epidemia forte de dengue tipo IV, a dengue
neonatal e encefalite por Chikungunya. Aliás, também temos
possibilidades de outras doenças chegando. O Zika pode ser o desafio que
precisávamos para conseguir estar no patamar de nossos colegas dos EUA e
Europa fazendo com que as matérias de saúde sejam baseadas em
evidências, assim com deveria acontecer na política, na economia ou com
as notícias da cidade.


***


Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de “A saúde na mídia.
Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos”. Ed. Summus.


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