sábado, 27 de fevereiro de 2016

As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo

As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo



As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo

Para o intelectual, filósofo e romancista italiano, o fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis
Enviado por Sérgio T.
Do Opera Mundi
 
Intelectual italiano, romancista e
filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa" morreu em
19 de fevereiro, aos 84 anos; 'O fascismo eterno ainda está ao nosso
redor, às vezes em trajes civis', diz Eco
 
A Revista Samuel reproduz o texto de
Umberto Eco Ur-Fascismo, produzido originalmente para uma conferência
proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da
liberação da Europa:
'O Fascismo Eterno'
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um
concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas
italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto. 
Depois, em 1943, descobri o significado
da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso.
Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos
entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e
aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício. 
Em abril de 1945, a Resistência tomou
Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que
eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de
gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a
resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri,
envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna
nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em
muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali
esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada
pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais
significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz
rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos
sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela
liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os
membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que
liberdade de palavra significa também liberdade da retórica. 
Alguns dias depois vi os primeiros
soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que
encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick
Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro
bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão
Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de
escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores
amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês
aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia
um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores
norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a
de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente,
faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro
chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o
chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte. 
Em maio, ouvimos dizer que a guerra
tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a
guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses
seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local,
mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”.
Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu
significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido
liberados. 
Hoje na Itália existem algumas pessoas
que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no
curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante:
compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da
Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos
esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens
norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era
irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam
pagando seu débito. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a
Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a
Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um
papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com
bandeiras de diversas cores. 
Grudado ao rádio, passava as noites — as
janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno
ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio
Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e
poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior
parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que
Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da
Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu
herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um
monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo
de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de
Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha
infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais
diversas cores. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a
guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos
agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos
terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a
reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que
lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até
admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não
posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram. 
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos
totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial,
podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles
retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se
o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no
corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade
imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado,
no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na
recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho
dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI
(Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas
tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo
preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na
Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma
original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação
inteira. 
Todavia, embora os regimes políticos
possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua
legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo
de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de
instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro
fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos. 
Portanto, permitam-me perguntar por que
não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram
definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram",
de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos
com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis. 
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os
norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram
chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater
Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas
combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma
expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão
oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e
ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer
ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo
eram regimes totalitários. 
Wikicommons

Hitler e Mussolini em Munique, em 1940
O fascismo foi certamente uma ditadura,
mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto
pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se
pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O
artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia
Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni
Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético
absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não
tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois
firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que
benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais,
segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali
mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente,
distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava
sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da
Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira
ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos
os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no
regime de Mussolini. 
O fascismo italiano foi o primeiro a
criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se
— conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace.
Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na
Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia,
Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal,
Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o
fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o
novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes
de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça
comunista. 
Todavia, a prioridade histórica não me
parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra
“fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para
movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo
continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por
assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não
possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era
um totalitarismo fuzzy[1].
O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de
diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É
possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e
revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios
concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o
livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando
sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de
terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O
fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos
proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse
as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”.
Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois
meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república
“social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de
acentuações quase jacobinas. 
Existiu apenas uma arquitetura nazista,
apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não
havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se
Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário,
existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus
pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno
racionalismo de Gropius. 
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália
existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era
controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que
encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados
Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal
Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e
razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as
novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido
banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch
nibelúngico, o único aceito. 
O poeta nacional era D'Annunzio, um
dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um
pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu
nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses
de decadentismo francês. 
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido
considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o
cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram
nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália
na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o
risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto
fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império
romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que
um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria
inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que
tratava o luar com grande respeito. 
Muitos dos futuros membros da
Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista,
foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes
universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses
clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que
circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto
porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre
eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los. 
No curso daqueles vinte anos, a poesia
dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a
estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da
torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário
do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta
distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não
prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro. 
O que não significa que o fascismo
italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte,
Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de
imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos
confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e
o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava
diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio
formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era
devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e
ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão
estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de
vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos. 
Chegamos agora ao segundo ponto de minha
tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o
falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente
pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se
jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda.
Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein,
acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo,
pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade
particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma
série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de
família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de
grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo
2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida
em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante
a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4,
obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum
com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes
similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade
ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo
porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e
ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo
o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e
teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um
anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra
Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal
(completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais
respeitados gurus fascistas, Julios Evola. 


 



A despeito dessa confusão,
considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo
que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais
características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se
contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou
fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com
que se forme uma nebulosa fascista. 
1.   A
primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O
tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do
pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas
nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo
grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões
diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a
sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa
revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então
esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos
celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa
nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente,
como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças
ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as
mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer
coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem,
alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Como consequência, não
pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por
todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É
suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para
encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista
nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais
importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola,
misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o
Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua
abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu
ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de
sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias
americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo
Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de
juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O
tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas
como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em
geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais
tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos
industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial
de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden).
A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de
1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos
como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode
ser definido como “irracionalismo”. 
3. O
irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela
em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão.
Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na
medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração
atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a
pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”,
“Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de
comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um
sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam
empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência
liberal de abandono dos valores tradicionais. 
4. Nenhuma
forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera
distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a
comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço
dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 
5. O
desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e
busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença.
O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando
fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por
definição. 
6. O
Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica
por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o
apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise
econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos
sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários”
estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto
exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu
auditório. 
7. Para
os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo
diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um
mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que
podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz
da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente
internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais
fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô
tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor
objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e
fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 
8. Os
adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força
do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o
“povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos,
pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros
graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem,
contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim,
graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são,
ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão
condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes
de avaliar com objetividade a força do inimigo. 
9. Para
o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”.
Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a
vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser
derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento
assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma
sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da
guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa
contradição. 
10. O
elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária,
enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os
elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos
fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”.
Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do
partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se
membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder,
que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas
conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na
debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um
“dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente
(segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus
subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados.
Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 
11. Nesta
perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer
mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o
heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao
culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À
gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso
enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de
atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário,
aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida
heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua
impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes
levar os outros à morte. 
12. Como
tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o
Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é
a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma
condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade
à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o
herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus
jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 
13. O
Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia,
os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos
só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as
decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos
enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma
qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como
nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder
apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os
cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o
papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um
bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza
Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um
populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um
grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz
do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve
opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases
pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”.
De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e
pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em
dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do
povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 
14. O
Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por
Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas
certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de
ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em
um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os
instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar
prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a
forma inocente de um talk-show popular. 
Depois de indicar os arquétipos
possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho
de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo
havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe
mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os
jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de
uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas
diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira
página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia
Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido
Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas
as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional
Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país,
podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu
era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que
tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim
que eles já existiam como organizações clandestinas. 
A mensagem celebrava o fim da ditadura e
o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação
política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a
primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas
palavras renasci como homem livre ocidental. 
Devemos ficar atentos para que o sentido
dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao
nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós
se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”.
Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as
vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador
para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do
mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a
democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando
dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”
 (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”. 
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.

Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.

Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
 


[1] Usado
atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos
imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.

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