domingo, 5 de julho de 2015

Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas - Carta Maior

O golpe em marcha: mirem se no exemplo das lideranças de Atenas - Carta Maior



O golpe em marcha: mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas

Seja
qual for o desfecho do plebiscito deste domingo, é o método o que mais
importa à encruzilhada do Brasil nos dias que correm.

por: Saul Leblon







Levar a lógica dos mercados financeiros a um plebiscito é algo de que nunca se tinha ouvido falar antes.

Mas foi justamente isso o que ocorreu na Grécia neste domingo.

Independente
do resultado das urnas - a essa altura já sabido - é forçoso
reconhecer: um anel poderoso da blindagem neoliberal foi rompido na cena
política.

E isso não é um detalhe: é um método.

O que ele ensina é que a única opção à tirania financeira é submeter o mercado ao escrutínio da democracia.

Na
crise de 2008, a brava Islândia já havia decidido o destino de
seus bancos - um buraco especulativo dez vezes superior ao PIB do país
- a um plebiscito.

Entre sacrificar a nação ou a banca, a decisão foi salvar a nação e deixar o rentismo falir.

A
abrangência e o impacto daquela consulta, porém, foi menor. A pequena
nação de 320 mil habitantes - que se recuperou de maneira formidável e
hoje desfruta de pleno emprego - sequer pertencia ao euro.

Foi tratada como um pitoresco ponto fora da curva pelo colunismo de mercado.

O que a Grécia fez agora é de superior importância e vai muito além do pitoresco.

Ela
resgatou o princípio segundo o qual política é economia concentrada
na expressão mais direta dos conflitos de classe de uma sociedade.

Seu
inestimável exemplo foi justamente dar transparência àquilo que as
ideias dominantes de nossa época lograram mascarar. Ou seja, a farsa que
empresta aos interesses plutocráticos da finança a condição de uma
ciência acima dos conflitos sociais e econômicos.

Reforçar a
blindagem a-histórica do capitalismo, de modo a cegar os olhos para a
relação de poder que lhe é intrínseca, foi uma das maiores vitórias do
neoliberalismo em nosso tempo.

Para consumar esse abastardamento,
ademais de se atribuir à economia uma autossuficiência regulatória que
ela não tem, o neoliberalismo cuidou de aprofundar a interferência do
dinheiro no sentido inverso.

O esforço obstinado de Eduardo Cunha
para legitimar a presença do dinheiro empresarial nas campanhas
eleitorais é um emblema dessa inversão dos papéis, com o sotaque
golpista que marca a urgência brasileira nesse momento.

Que isso
tenha acontecido em meio a investigações de corrupção cuja origem reside
justamente no intercurso entre empresas e partidos não é apenas um
escárnio.

É a força do sistema corruptor do dinheiro impondo a
sua supremacia na vida do país de forma explícita, quase obscena, nesse
momento.

A dissonância aberta pela Grécia não é pequena.

Sobretudo,
porém, não deve ser avaliada pelas forças progressistas brasileiras
apenas com base no resultado efêmero do plebiscito deste domingo.

Seja qual for o seu desfecho, é o método o que mais importa à encruzilhada do país nos dias que correm.

Ou
não foi justamente a equivocada decisão de endossar a ‘objetividade’
dos mercados na definição dos ajustes que deveriam ter sido repactuados
politicamente, que levou ao afunilamento golpista atual?

A opção
pela estratégia publicitária nas eleições de 2014 (criticada então neste
espaço, e que quase levou à derrota da candidatura Dilma) subestimou a
capacidade de luta e discernimento do protagonista social que  que
poderia fazê-lo.

Negligenciou-se a força e a centralidade
política da tomada de consciência histórica de 60 milhões de brasileiros
que saíram da miséria e da pobreza e ascenderam na pirâmide da renda no
ciclo de 12 anos de governos progressistas.

Ao invés de ser corrigido, o equívoco eleitoral se aprofundou uma vez instalada o novo mandato.

A
um centurião dos mercados foi dada carta branca para proceder a
ajustes cuja pertinência e ponderação só teriam viabilidade
se negociados com as forças sociais do país.

A frente de esquerda Syriza não cometeu esse erro; pode pagar caro por sua ousadia, é verdade.

Mas não tão caro a ponto de ver esfarelar a confiança de suas bases em sua coerência.

Não
tão caro a ponto de, eventualmente derrotada no referendo, perder o
vigor representativo para uma volta ao poder até com maior força, quem
sabe.

É a emergência ameaçadora dessa força - não os bilhões de
euros em questão no calote grego - que explica a determinação da troika
(FMI, BCE e Comissão do Euro) de não permitir a consumação de um acordo
favorável ao governo do primeiro ministro Alexis Tsipras.

A sequência política antecedente ao plebiscito ilumina essa hierarquia com clareza.

Vejamos:

1.
Em 21 de junho, o  presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude
Juncker, e o primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, chegaram a um
esboço de acordo que gerou euforia nos mercados;

2. Em 23 de
junho, tudo havia ruído. O que se passou nessas 48 horas é a pergunta
que analistas isentos se fazem em diferentes veículos;

3. A
maioria atribui ao FMI, aos falcões germânicos  e a governos
reacionários do euro que vergastaram seus povos, Espanha e Portugal, por
exemplo,  o veto ao acordo favorável à Grécia. Não por divergências
intransponíveis em relação a valores. Não. Acima de tudo porque uma
vitória do  Syriza abriria o precedente encorajador a novos hereges em
marcha. Caso do Podemos espanhol, por exemplo;

4. O argumento é corroborado matematicamente:

-
cálculos do Royal Bank of Scotland, divulgados pelo jornal Valor,
estimam que a soma  total das dívidas pendentes no imbróglio grego é de
537 bilhões de euros;

- se o país saísse do euro, as perdas para os credores seriam de 234 bi de euros (2,4% do PIB do euro);

-
todavia, se lograsse uma reestruturação, como reivindica o Syriza,
 trazendo a dívida de 200% do PIB  para 100% dele, com o perdão do
restante, a perda seria de apenas  1,4% do PIB da zona do euro;

5.
Estudos do próprio FMI divulgados na 6ª feira admitem que a dívida da
Grécia é impagável, qualquer que seja o grau de sacrifício que venha a
ser imposto a sua população;

6. De acordo com o estudo, vazado
sem a assinatura da direção do FMI, a dívida grega deveria  ser abatida
em 30%, ademais de se assegurar uma carência de 20 anos para iniciar o
pagamento  restante. Qualquer ‘ajuste’ sem esse requisito é
insustentável.

Tudo isso é muito, muito próximo do que argumenta e reivindica o governo Syriza.

Mas nunca lhe foi oferecido na mesa de negociações.

Por quê?

Justamente porque a vitória da democracia grega implodiria uma das mais eficazes operações ideológicas das últimas décadas.

Essa que  apresenta a economia como um enclave autônomo, esfericamente subordinado às leis naturais dos livres mercados.

A
serviço dessa mesma assepsia histórica vicejam no Brasil as editorias
de economia e o colunismo dos vulgarizadores do capital metafísico, esse
que em textos abestalhados de tanta toxina neoliberal, apresenta os
desequilíbrios estruturais  do desenvolvimento como mera inépcia do
lulopopulismo.

Essa lixeira histórica e ética  prendeu a
respiração diante da odisseia do país que mais longe levou a
politização  da disjuntiva em torno da qual se debate  a  luta pelo
desenvolvimento em nosso tempo: a economia deve trabalhar pela sociedade
ou contra ela para servir a banqueiros e rentistas?

A
transformação da pergunta em uma disputa política aberta e explícita  é
uma vitória da Grécia e uma derrota antecipada da ideologia mercadista urbi et orbi.

Não
por acaso, uma gigantesca operação de asfixia foi acionada para impedir
que esse levante se consumasse no plebiscito deste domingo.

A
sociedade que já perdeu 1/5 de quase tudo, empregos, salários,
aposentadorias, leitos hospitalares etc  foi explicitamente ameaçada de
confinamento financeiro e político, se insistisse em reinventar seu
contrato social no escrutínio proposto pelo primeiro ministro, Alexis
Tsipras.

A 48 horas do referendo, na sexta-feira, o sindicato dos
banqueiros da Grécia lançou um comunicado coercitivo para dizer que o
sistema   dispunha de apenas um bi de euros em caixa --insuficiente para
prover a liquidez do mercado no day after do escrutínio, quando o país
ficaria órfão se votasse ‘não’ ao arrocho.

Grandes empresas e
redes de serviços –postos de gasolina, por exemplo— anteciparam-se para
vender exclusivamente cash a uma população sem caixa, confrontando-a
assim com a prefiguração do colapso acenado.

Na antevéspera do
plebiscito, as principais redes de televisão, as Globos de lá, dedicaram
46 minutos à cobertura dos comícios favoráveis ao arrocho e apenas oito
minutos às concentrações pelo ‘não’.

Autoridades da União
Européia, governantes conservadores, bancos e consultorias
–compulsivamente ecoados pelo dispositivo midiático local—fecharam o
cerco com ameaças, coações e  chantagens.

Consumou-se assim uma 
operação de propaganda de guerra de virulência equivalente ao cerco do
exército branco contra a Rússia revolucionária, em 1917.

‘O que
estão fazendo com a Grécia tem um nome: terrorismo”, disse o ministro
Yannus Varoufakis, autor também da frase síntese  da  polaridade entre a
coerência e a coerção: ‘Prefiro cortar um braço a assinar um acordo que
não contemple a reestruturação da dívida da Grécia'.

Independente
do veredito do domingo, portanto, a heresia já terá desempenhado a
missão pedagógica de produzir um clarão capaz de iluminar o imaginário
social para muito além das fronteiras gregas.

Para que servem as
urnas afinal, se um governo, e o projeto por elas escolhidos, é
literalmente destruído no momento seguinte ‘pelas imposições dos
mercados' assim afrontados?

Ou para ser mais explícito diante da
urgência do Brasil nos dias que correm: para que servem  se, uma vez
eleito, o governante é coagido pelo cerco do dinheiro a fazer concessões
que corroem os vínculos de confiança com sua principal base de apoio,
tornando-se ainda mais vulnerável às imposições dos mercados e dos
interesses determinados a derrubá-lo?

A força e a tragédia do
povo grego reside em particularizar a heresia em relação à encruzilha
diante da qual muitos hesitam  na vã esperança de obter a indulgência
dos mercados.

Um dos principais jornais brasileiros, a Folha,
dedica seu caderno de Política, na edição deste domingo, a avaliar as
possibilidades, preferências e métodos mais adequados à derrubada do
governo da Presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54 milhões de votos há
apenas e longínquos oito meses.

A principal batalha do nosso
tempo, portanto, aqui ou na Grécia, fique claro, não se trava em torno
de cifras ou adequações macroeconômicas  em si. Mas, sim, em se
preservar ou não o poder de dominação dos detentores das cifras.

O
câmbio defasado no caso brasileiro - um exemplo de problema real que
sucateou parte da indústria - não é tão grave para a plutocracia local e
global quanto a consolidação de um poder progressista no comando do
Estado.

Derruba-lo é uma prioridade que antecede e independe da
genuflexão macroeconômica – ou as concessões suicidas em curso já teriam
erradicado o furor golpista.

Não é  propriamente uma trégua que se  assiste no Brasil nesse momento.

A resposta, portanto, é de outra natureza.

Trata-se
de  trazer a economia para a política e de levar a política para a
economia. Ou seja, repactuar o desenvolvimento com uma nova correlação
de forças.

É essa fusão que pode devolver à democracia um poder ordenador que a  sociedade cedeu ao mercado.

Não se negue à economia leis próprias, circunstâncias limitadoras e incertezas a exigir gestão, equilíbrio e bom senso.

Mas
sancionar a não ingerência da política nas decisões do desenvolvimento 
é tão somente uma operação suicida de entorpecimento social para
preservar e engordar interesses sabidos.

Nas crises cíclicas do
sistema, quando se descarrega sobre a sociedade um fardo de sacrifícios
dificilmente vendável como ciência ou fatalidade, o labor dessa
catequese  é afrontado pela natureza crua das coisas.

Democracia e capitalismo deparam-se então em pé de igualdade com a disputa pelo destino da nação e do seu desenvolvimento.

Atenas se transformou na capital dessa transgressão nos últimos meses.

O
nó górdio que impede o Brasil de extrair as devidas lições dessa
experiência é a rala contrapartida de organização coletiva para levar a
cabo a luta por uma outra agenda de desenvolvimento.

Não há espaço para mágicas na história.

O
país não sairá do atoleiro se o sujeito do processo, aquele do qual
depende o respaldo  para enfrentar a coerção mercadista, permanecer 
alheio aos  conflitos que determinarão o seu destino.

O salto em direção a isso hoje no Brasil chama-se frente progressista e democrática.

E a pergunta que ela enseja às organizações populares é curta e grossa:

"o
que mais precisa acontecer aqui para que as lideranças sociais anunciem
um comitê unificado contra o golpe e uma agenda política de repactuação
do desenvolvimento?"

Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas.

Enquanto há tempo.

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