domingo, 5 de julho de 2015

'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado' - Carta Maior

'A diferença é que a operação 'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado' - Carta Maior



A diferença é que a operação 'Mãos Limpas' não visava um golpe de Estado'

Juristas brasileiros enviaram perguntas sobre a 'lava-jato' a
Raúl Zaffaroni, o maior penalista da América Latina, que criticou as
delações premiadas.


Martín Granovsky, de Buenos Aires - Especial para Carta Maior





Sua casa, no bairro de Flores, setor de classe média, tranquilo, a meia hora do centro de Buenos Aires, parece uma velha casona da Toscana. Sua mesa de trabalho fica no meio de uma sala enorme. Tem as dimensões de uma biblioteca pública. Perto das estantes, pode-se ver belapeças de artesanato latino-americanas, como um retábulo peruano de Ayacucho. Sobre essa mesa, ao lado do computador, uma pilha de livros de Direito, muitos deles em alemão, sobre a tipologia dos delitos políticoeconômicos, ou sobre o nazismo. Raúl Zaffaroni completou 75 anos no passado dia 7 de janeiro. Ao assumir como juiz da Corte Suprema da Argentina, em 2003, indicado pelo presidente Néstor Kirchner, prometeu se aposentar quando alcançasse essa idade. Honrou sua promessa. Mas Zaffaroni, um dos penalistas de maior prestígio no mundo, nãse distanciou do mundo. Viaja, escreve, dá palestras, recebe doutorados honoris causa, estuda, dá aulas em universidades públicas da Grande Buenos AiresTambém participa da discussão pública sobre os acontecimentos argentinos e latino-americanosNesta entrevista para Carta Maior ele demonstra seu vigor intacto, respondendo perguntas dos jornalistas e inquietudes levantadas por importantes juristas do Brasil.

 
 
– Tarso Genro, ex-ministro da Justiça no governo de Lula e ex-governador do Rio Grande do Sul, pergunta que acontece com o Estado de Direitquando a grande imprensa influi tanto no processo penal, como vem sucedendo ultimamente.

 
 
– Penso
que a invenção da realidade por parte dos meios de comunicação,
especialmente os televisivos, está afetando a base do Estado de
Direito. E cria um perigo grave para a sua sobrevivência.

 
 
– Transmito a você uma pergunta do Professor da UERJ, Juarez Estevam Xavier Tavares Que medidas podem ser tomadas para diminuir a irracionalidade do poder punitivo e evitar a destruição do Estado de Direito?

 
 
– A primeira
medida tem que ser a proibição constitucional dos monopólios ou
oligopólios televisivos. Sem pluralidade midiática não podemos ter
democracia. O que os meios monopólios ou oligopólios estão fazendo
na América Latina é trágico. Nos países onde existem altos níveis de
violência letal, eles a naturalizam. Sua proposta se reduz a atentar
contra as garantias individuais. Nos países onde a
letalidade é baixa, eles buscam exacerbá-la. Clamam pela criação de
um aparato punitivo altamente repressivo e, definitivamente,
também letal.

 
 
– É a vez do Professor da USP,  Alysson Leandro
Mascaro. Os meios de comunicação de massa cada vez mais formam e moldam
perspectivas da compreensão do jurista. Em face disso, qual sua leitura
sobre o horizonte ideológico do jurista hoje? O mesmo do capital e dos
grandes meios de comunicação de massa? Qual sua percepção da ideologia
como constituinte do afazer do jurista na atualidade?

 
 
– Não tenho
a menor dúvida de que a Televisa, no México, ou
a Rede Globo, no Brasil, entre outros exemplos, são conglomerados,
formam parte indissociável do capital financeiro
transnacional. Logo, também são parte desse modelo de sociedade,
que é uma sociedade com uns 30% de incluídos e 70% de excluídos.
Um modelo de sociedade excludente. Daí nasce uma necessidade,
querem moldar um jurista que se mantenha nessa lógica
formal e não perceba que está legitimando um processo de genocídio a
conta-gotas. Temos esse tipo de genocídio, em grande parte da América
Latina, em circunstância em que o Estado já não é mais o que mata, senão
o que fomenta a violência letal entre esses 70% que o modelo quer
excluir. Não nos esqueçamos que dos 23 países que superam a taxa anual
de 20 homicídios a cada 100 mil habitantes 18 são da América
Latina e do Caribe, os outros cindo são
africanos. Tampouco esqueçamos que também somos campeões de coeficientes
de Gini, ou seja, má distribuição da renda. Esse é o modelo de
sociedade que os meios massivos concentrados querem reafirmar. O pior
que pode acontecer na América
Latina é continuar assimilando assepticamente as teorias importadas como
se não tivessem conteúdo
político, e nos perdermos nas doutrinas vinculadas a teorias presas a
meros planteamentos normativistas. Se, ideologicamente, a doutrina
jurídica latino-americana não evolui em direção ao realismo,
lamentavelmente não fará nenhum favor nem ao Estado de Direito
nem às nossas democracias.

 
 
– Agora quem pergunta é o presidente
do Movimento do Ministério Público Democrático, Roberto Livianu. Qual a
importância dos acordos de leniência, para o controle da corrupção e
qual a importância da intervenção do Ministério Público, fiscalizando a
celebração desses acordos?

 
 
– Pessoalmente, acho que
a delação premiada é perigosa em qualquer caso. Especialmente em casos
de corrupção. Hoje, na Alemanha, estão tentando elaborar um novo
conceito de crime político-econômico para os piores casos de
destruição econômica. Por exemplo, para as terríveis crises bancárias
que determinaram que os Estados Unidos
tivessem que gastar 500 bilhões de dólares e a Europa 460 bilhões de
euros para salvar um sistema financeiro havia provocado, grosseiramente,
sua própria ruína, diante da indiferença dos órgãos de
controle bancário. Não acredito que, em casos assim, se possa aplicar,
nem minimamente, um acordo no estilo da delação premiada. O mais trágico
nesses casos é depender da boa vontade dos próprios delinquentes, que
ofereçam suas informações para se chegar às soluções. Há um livro
muito interessante sobre o tema, do professor Wolfgang Naucke, que se
refere a algo que merece uma reflexão: o título é O Conceito de Delito Político-econômico.

 
 
– Quem
pergunta agora é o Presidente da Associação Brasileira dos Juízes pela
Democracia, André Augusto Bezerra. Do ponto de vista da estrutura
interna do Judiciário, há alguma peculiaridade do sistema de justiça
argentino que o tornou mais sensível às violações aos Direitos Humanos
da época da ditadura do que o sistema de justiça brasileiro?

 
 
– Não vejo
uma diferença notória, em termos de estrutura interna, de cada
Judiciário. A política argentina para casos de direitos humanos avançou
por iniciativa dos poderes
Executivo e Legislativo. Num primeiro momento, ela chocou com algumas
resistências dentro do Poder Judiciário.

 
 
– Depois dos juristas, a pergunta do jornalista. É possível comparar a Operação Lava Jato, no Brasil atual, com a Operação Mãos Limpas, na Itália dos Anos 90quando os juízes começaram a descobrir os grandes subornos nas obras públicas?

 
 
– Não
acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A Mãos Limpas não
foi uma tentativa de golpe de Estado. Não nos esqueçamos que, se
analisamos todos os golpes de Estado militares que aconteceram na
região, eles se agarraram em duas bandeiras para se legitimar. Uma era a
de supostamente descontrolada criminalidade. Outra era a da corrupção.
Lamentavelmente, o que verificamos, no final de um século de tristes
experiências, é que os maiores casos de
corrupção tiveram lugar sob amparo das forças reacionárias.
Ao dizer isso, não nego que em tal administração possa haver
personagens corruptos que devem ser punidos. Digo que em nenhum caso
pode ser um pretexto para que se legitime a
desestabilização democrática. A magnificação de casos individuais de
corrupção através dos meios massivos de comunicação é um velho recurso
golpista, que conhecemos por tristes experiências.
Em definitivo, não é mais que o uso de formas estruturais de corrupção
para desarmar o potencial produtivo e as relações econômicas das nossas
sociedades.

 
 
– No Brasil, juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, pretende alterar o Código Penal, para colocar na prisão os réus condenados em 1ª Instância, independentemente dos recursos para instâncias superiores, ou seja, é quase um tribunal de exceção.

 
 
– Na América
Latina, mais de 60% da população carcerária chegou à prisão sem ser
condenado em nenhuma instância. Ou seja, estão presos só como medida
cautelar, em forma de prisão preventiva. É uma realidade que já
é estrutural, se arrastra ao longo de anos e que implica numa inversão
do sistema penal. Primeiro alguém é detido, depois é condenado, a pena
vem antes da condenação.

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