segunda-feira, 18 de maio de 2015

O golpe do Facebook — CartaCapital

O golpe do Facebook — CartaCapital



O golpe do Facebook


por Antonio Luiz M. C. Costa



publicado
12/05/2015 05h50

A empresa de Zuckerberg tenta criar um monopólio mundial da comunicação, informação e jornalismo


Um aspecto peculiar
da Cúpula das Américas no Panamá, dias 10 e 11 de abril, foi o papel do
presidente do Facebook, Mark Zuckerberg. O jovem executivo (30 anos)
circulou pela reunião dos chefes de Estado como se fosse mais um deles
ou pelo menos como um presidente do Banco Mundial, não como mais um
participante do fórum empresarial paralelo. Chegou a invadir, por
engano, uma reunião entre os presidentes do Panamá e República
Dominicana. 
Vários líderes, inclusive a brasileira
Dilma Rousseff, o mexicano Peña Nieto, a argentina Cristina Kirchner, o
peruano Ollanta Humala e o panamenho Juan Carlos Varela se fizeram
fotografar ao lado
do executivo e com certeza julgaram isso positivo
para a própria imagem. A oferta de “internet gratuita” do Facebook a
países latino-americanos, a começar por Colômbia, Guatemala e Panamá,
três dos governos mais conservadores do continente, recebeu quase tanta
cobertura quanto a reconciliação entre Washington e Havana. Alguns se
compraziam em considerá-lo representante de uma “nação” de 1,4 bilhão de
usuários, maior que a China.
Aparentemente, a aura “libertária”, “democrática” e
“revolucionária” da internet foi pouco abalada pelas revelações de
Edward Snowden e Julian Assange. A NSA e suas similares, ou “o governo”,
foram responsabilizadas por tudo de negativo ou duvidoso e as grandes
empresas do Vale do Silício posaram como vestais escandalizadas, como se
seu papel na operação não fosse essencial e consciente e seu uso
político um subproduto inevitável. O ciberespaço continua a ser visto
pelos usuários como um playground barato e inofensivo e seus
empreendedores como gênios simpáticos e filantrópicos.
Seria mais sábio vê-lo como a versão atualizada da Terra
dos Brinquedos do Pinóquio, de Carlo Collodi (ou a Ilha dos Prazeres da
versão Disney), para onde crianças ansiosas para escapar do trabalho e
dos estudos são levadas para uma sucessão de diversões gratuitas e
inesgotáveis, mas ao cabo de algum tempo se
veem transformados em
burros e nessa forma postos a trabalhar por supostos benfeitores
revelados como exploradores inescrupulosos.
O mundo estará mais maduro quando as
ofertas, propostas e produtos de um Facebook, um Google, uma Apple ou
uma Microsoft forem recebidas com o mesmo ceticismo saudável com que o
público encara a publicidade institucional da Standard Oil ou do Goldman
Sachs. Quando esse dia chegar, porém, provavelmente será tarde demais e
o Vale do Silício terá controlado corações e mentes de forma mais
completa do que Wall Street e Hollywood jamais sonharam.
Como explica o especialista Evgeny Morozov no jornal britânico Guardian,
o Facebook não é uma instituição de caridade. Está interessado em
“inclusão digital” tanto quanto agiotas em “inclusão financeira”. O
projeto internet.org fornece conexão “gratuita” por celular aos pobres
da América Latina, África e Sudeste Asiático, mas apenas ao Facebook e
pouca coisa mais (como a Wikipedia). Muitos dos que se tornaram usuários
da internet nos últimos anos têm a impressão de que ela é a rede de
Zuckerberg, mas para esses isso será estritamente verdade.
Isso é difícil de conciliar com o marco civil da
internet que o governo brasileiro tanto se empenhou para aprovar em
2014. Para cobrar de Zuckerberg pelo acesso ao Facebook, as operadoras
têm de acompanhar a navegação e guardar os dados de acesso, o que é
proibido. Dar-lhe prioridade de tráfego viola a neutralidade da rede. O
próprio princípio de fornecer conexão gratuita a determinados sites e
cobrar pelo restante é de legalidade duvidosa. Se a regulamentação
autorizar essa prática, pode esvaziar a lei de qualquer sentido.
Lembra a política da Microsoft de
oferecer softwares gratuitos ou muito mais baratos a escolas, estudantes
e serviços públicos para aprisionar usuários em seu sistema, a ponto de
não cogitarem outro quando se tornassem consumidores ou empreendedores.
Mas é muito mais. Além de condicionar a maneira de navegar na internet,
o Facebook lucrará ao dispor dos dados pessoais e coletivos sobre esses
usuários para vendê-los a empresas ou disponibilizá-los ao Estado e
monopolizar a atenção desse público melhor que qualquer rede de TV. 
Como sabe quem já usou o Facebook, este
tem a política de criar dependência para depois cobrar cada vez mais
caro pela interação. Empresas e celebridades que chegaram a criar um
público considerável na rede de repente descobriram que teriam de pagar
para que seus “amigos” continuassem a ver suas mensagens. 
Ao mesmo tempo, a rede impõe regras arbitrárias. Uma delas é o veto
a pseudônimos e duplas identidades. Zuckerberg alega ser tal prática
“falta de integridade”, mas a verdadeira questão é garantir a real
identidade dos usuários para que as informações sobre eles tenham maior
valor. Assim como um pseudônimo pode ajudar a escapar da perseguição de
um regime autoritário, permitiria driblar a curiosidade de um empregador
ou seguradora sobre opiniões políticas, relações afetivas, consultas,
exames, compras e percursos nas horas de lazer. Ou, quando bugigangas
como o Apple Watch forem comuns, acompanhar seus batimentos cardíacos,
pressão e dieta. Nunca as pessoas foram tão transparentes para governos e
empresas – e, ao mesmo tempo, nunca essas instituições foram tão opacas
para o público.
Os critérios de “moralidade” da rede,
aparentemente arbitrários, seguem uma lógica igualmente comercial. Sua
censura é conhecida por ignorar cenas de violência extrema, ameaças de
morte e racismo explícito enquanto chega a extremos ridículos de
moralismo como os de bloquear a foto histórica de uma indígena na página
do Ministério da Cultura e uma reprodução de A Origem do Mundo,
de Gustave Courbet, por um professor de arte. Não se trata de seguir
qualquer ética coerente, mas de criar um ambiente no qual uma classe
média puritana se sinta à vontade para navegar e empresários para
anunciar.
As leis dão ao Facebook, como entidade
privada, o privilégio de proibir conteúdos como bem entender. O problema
é quando o monopólio prático do acesso a um meio de comunicação cada
vez mais indispensável, principalmente se apoiado por convênios com
governos nacionais, proporciona o controle de fato do espaço público. É
como entregar a uma empresa privada a gestão de todas as ruas, praças,
praias e parques e fazer da cidade um shopping à mercê das normas de
comportamento dos proprietários, sem possibilidade de recurso à Justiça.
A ambição da rede é acostumar os usuários a recorrer
a Zuckerberg para tudo e hospedar dentro de seus limites todo tipo de
negócios. Quem quiser levar espetáculos, notícias, publicidade,
educação, serviços ou vendas às massas terá de se entender com ele e
aceitar suas condições.
No tocante à mídia e ao jornalismo, o plano é levar
algumas das maiores empresas a se hospedar dentro da rede social.
Espera-se que os primeiros a aceitar a proposta incluam The New York Times, BuzzFeed e National Geographic, talvez também The Times,
Quartz e Huffington Post. Em troca de administrar sua própria
publicidade e informações sobre leitores e espectadores, esses veículos
dividiriam receita (e talvez dados) com Zuckerberg, que administraria
sua publicidade. Mesmo em 2014, antes da concretização desses acordos ou
dos planos de “internet gratuita”, o Facebook se tornou a principal
fonte de notícias para uma fatia assustadora do público: 67% no Brasil,
57% na Itália, 50% na Espanha, 37% nos EUA.
Acreditar que isso não afetará os
conteúdos é mera ilusão. Esses veículos teriam marca e identidade
diluídas e teriam de se sujeitar à cultura e prioridades do Facebook,
explicitadas por Zuckerberg a um jornalista que o questionou sobre os
critérios dos algoritmos que decidem as notícias exibidas a cada
usuário: “Um esquilo no seu jardim pode ser mais relevante para seus
interesses atuais do que gente morrendo na África”. O público não quer
ouvir sobre problemas alheios e sim de seus gostos e decisões
cotidianas. Textos longos, principalmente se exigem algum esforço ou
causam algum desconforto ao leitor, são menos úteis do que fofocas de
celebridades, informações superficiais e engraçadas, fotos de gatinhos,
dicas de consumo e problemas do cotidiano. Mais Beyoncé e menos Boko
Haram.
Dada a possibilidade de definir o perfil individual
do usuário, pode selecionar o tipo de notícia e informação conforme suas
crenças e preferências. O Facebook é muito bom nisso. Testes mostraram
que com analisar 70 “curtidas” na rede se pode conhecer o perfil de uma
pessoa melhor que um amigo ou colega de quarto, com 150, melhor que um
pai ou irmão e, com 300, quase tão bem quanto um marido ou esposa. Não
só ele, como certeza: no Google, os interesses indicados por buscas
anteriores decidirão se ao buscar por “Egito” o internauta encontrará
informações turísticas, oportunidades de negócio, biografias de faraós
ou detalhes sobre as últimas arbitrariedades da ditadura militar.
De certa forma, isso acontece com a mídia
tradicional. Ao escolher uma revista e não outra, o leitor escolhe uma
abordagem, um ponto de vista e uma temática. Mas isso envolve certo grau
de escolha consciente e nada impede que, vez por outra, experimente
outra publicação. Na rede, é a notícia que escolhe por quem será lida, e
uma vez que o perfil do usuário se defina, suas oportunidades de
escolha são, na prática, reduzidas. Depende apenas de Zuckerberg decidir
se é mais lucrativo manter cada um em sua zona de conforto ou
influenciar sutilmente suas opiniões na direção mais conveniente aos
interesses dos controladores da rede. Nenhum ser capaz de refletir
deveria estar disposto a reforçar seu monopólio e lhe dar ainda mais
poder. Confiar numa empresa como essa para prestar um serviço essencial é
tão sensato quanto entregar a gestão do Banco Central ao Goldman Sachs,
a Petrobras à Exxon ou a polícia e Justiça a uma empresa de
mercenários.  

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