sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Quem sai no retrato

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Os jornais de quinta-feira (22/1) refletem uma circunstância
corriqueira na relação da imprensa com o poder político e reproduzem o
estado de guerra que domina o ambiente midiático. As manchetes e outros
títulos de destaque nas primeiras páginas procuram exacerbar as
dificuldades da economia nacional, ao mesmo tempo em que tentam colocar o
problema de abastecimento de água em São Paulo na conta das mudanças
climáticas.
O conjunto de notícias e opiniões que os diários apresentam como a
síntese do período induz o leitor a acreditar que o Brasil é um comboio
em direção ao abismo, e que o condutor, o ministro da Fazenda Joaquim
Levy, está tomando as providências para reduzir a velocidade e desviá-lo
de volta para o trilho do desenvolvimento. A presidente da República,
responsável pela estratégia que o ministro deve administrar, é citada
quase exclusivamente no meio de declarações sobre o escândalo da
Petrobras.
Há espaço, ainda, para a fotografia do presidente reeleito da Bolívia,
Evo Morales, envergando a bata tradicional na cerimônia indígena que
antecede sua posse. Com exceção do Estado de S. Paulo, os jornais
expõem na primeira página a imagem de Morales junto a xamãs nativos,
acompanhada de textos que mal dissimulam o preconceito. No Globo, o título do conjunto é: “Dom Evo I”. Na Folha de S.Paulo, o título chega próximo da zombaria: “Pelos poderes de Evo”, diz o jornal paulista.
A imprensa não suporta essa coisa de indígena fora de reservas,
ocupando palácio de governo e resolvendo problemas centenários de seus
países.
Como se vê, há uma série de elementos a serem observados nas escolhas
dos editores. Um dos aspectos mais interessantes é o posicionamento que a
imprensa faz dos principais protagonistas da cena pública.
Evo Morales, que vai para seu terceiro mandato com um histórico de
êxitos na recuperação da economia e da autoestima dos bolivianos, é
retratado como uma aberração excêntrica, numa América Latina cuja elite
se imagina europeia. A presidente do Brasil vira personagem secundária
na crônica do poder. Por outro lado, o governador de São Paulo,
responsável direto pela crise que ameaça o bem-estar de milhões de
cidadãos, é retirado de cena quando deveria estar respondendo perguntas
incômodas, porém cruciais.
Racionamento de fato
Se a imprensa aprova as medidas anunciadas pelo governo federal, o
destaque vai para o ministro da Fazenda. Se a imprensa se vê na
contingência de reconhecer o descalabro na gestão dos recursos hídricos e
no sistema de distribuição de energia em território paulista, o foco
vai para auxiliares do segundo ou terceiro escalão. O governador Geraldo
Alckmin aparece apenas para criticar a empresa responsável pela gestão
da energia, AES Eletropaulo, numa clara manobra para criar um novo foco
de atenção e desviar do Palácio dos Bandeirantes o olhar crítico do
público.
O isolamento da presidente Dilma Rousseff no noticiário sobre medidas
econômicas (que a imprensa apoia) vem acompanhado de comentários que
amplificam supostas reações de dirigentes de seu partido às medidas
anunciadas pelo ministro da Fazenda. Assim, o leitor é induzido a pensar
que Joaquim Levy conduz a economia à revelia da presidente e contra a
orientação do partido que a reconduziu ao poder.
No caso paulista, quem vai para a frente da batalha comunicacional é o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, que em artigo na Folha de S.Paulo
tenta convencer o cidadão de que não há racionamento de água, mas pode
vir a acontecer. Aproveita para reconhecer que a principal causa da
crise hídrica é a fartura de vazamentos na tubulação. São 64 mil
quilômetros de tubos enterrados sob o asfalto da região metropolitana,
uma extensão correspondente a uma volta e meia em torno do planeta.
O presidente da Sabesp só não explica por que seu chefe, o governador
Geraldo Alckmin, não exigiu que a empresa corrigisse essa deficiência
desde a primeira vez que ocupou o Palácio dos Bandeirantes, em 2001. E a
Folha de S.Paulo esquece que publicou no dia 12 de outubro de 2003, um domingo (ver aqui),
uma reportagem na qual alertava para o fato de que, se nada fosse feito
para reduzir as perdas, a região metropolitana só teria água até o ano
de 2010.
Nada foi feito. Tudo que sai dos mananciais do sistema Cantareira se
perde nos vazamentos. A Sabesp raciona a água, a imprensa faz o
racionamento dos fatos.
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